Em entrevista realizada pelo DPL (Docentes Pela Liberdade) e cedida com exclusividade ao Conexão Política, Paulo Câmara, professor da UnB e ex-militar, explica a grande importância estratégica da Antártica para o Brasil, do ponto de vista militar e científico.
Desde a criação do mundo, os solos e subsolos onde se localizam a América do Sul, a África, a Índia e a Antártica contêm animais e elementos químicos que hoje a humanidade considera valiosos, de ouro a petróleo. No caso da Antártica, o continente representa 8% de todas as terras que formam a superfície da Terra. É um continente com uma superfície de 14 milhões de Km² e está quase completamente coberta por enormes geleiras (glaciares), exceção feita a algumas zonas de elevado aclive nas cadeias montanhosas e à extremidade norte da península Antártica.
O lugar é difícil de ocupar, porque é o continente mais frio, mais seco, com a maior média de altitude e de maior índice de ventos fortes do planeta. A temperatura mais baixa da Terra (-93,2 °C) foi registrada na Antártica, sendo a temperatura média na costa, durante o verão, de -10 °C; no interior do continente, é de -40 °C. Muitos autores o consideram um grande deserto polar, pela baixa taxa de precipitação no interior do continente. A altitude média da Antártica é de aproximadamente 2.000 metros. Ventanias com velocidades de aproximadamente 100 km/h são comuns e podem durar vários dias. Ventos de até 320 km/h já foram registrados na área costeira. Mas esse é um continente de altíssimo valor estratégico. Determina, inclusive, o fluxo de frentes frias que chegam ao Brasil, desde o Rio Grande do Sul até o sul da Amazônia.
Por esse motivo, e pela dureza das condições climáticas, na Antártica não tem população permanente, embora tenha uma população provisória de cientistas e pessoal de apoio nas bases polares, que oscila entre 1.000 (no inverno) e 4.000 mil pessoas (no verão). Dois destes assentamentos com uma população regular (incluindo crianças) são a Villa Las Estrellas (do Chile) e Base Esperanza (da Argentina).
Explorar a Antártica para fins militares e comerciais é proibido. Juridicamente, a Antártica está sujeita ao Tratado da Antártica, pelo qual as várias nações que reivindicavam territórios no continente concordam em suspender as suas reivindicações, abrindo o continente à exploração científica.
Alguns poucos países mantêm bases na região, e o Tratado Antártico, de 1959, determina que só têm direito a voto – e veto – países que realizam pesquisas científicas no local. Por mais turbulento que seja o planeta, com suas guerras e disputas de fronteira, a Antártica é considerada, pela Organização das Nações Unidas, como um “espaço para a ciência e a paz”.
Tudo isso até que o tratado expire, em 2048, quando deverá ser renovado, ou alterado. E só manterão direito a voz os países que continuarem desenvolvendo pesquisas científicas na região.
Hoje, são 29 países que possuem bases científicas na Antártica. E o Brasil é um deles, desde 1975, ainda que demonstre, em geral, não dar muita atenção ao continente gelado. Os outros 28 são: África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Bélgica, Bulgária, Chile, China, Coreia do Sul, Equador, Espanha, Estados Unidos, Federação Russa, Finlândia, França, Índia, Itália, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Peru, Polônia, Reino Unido, República Checa, Romênia, Suécia, Ucrânia e Uruguai.
Anualmente, cientistas destas 29 nações conduzem experimentos de reprodução impossível em outros lugares do mundo. Entre os cientistas, incluem-se biólogos, geólogos, oceanógrafos, físicos, astrônomos, glaciólogos e meteorologistas.
Entre os poucos pesquisadores que se interessam pela região, destaca-se Paulo Câmara. Professor de botânica de Universidade de Brasília (UnB), ele se interessou pela Antártica durante o doutorado, apresentado em 2008 na Universidade de Missouri-Saint Louis, nos EUA.
Na entrevista, o pesquisador, que participou de diversas expedições ao local, explica a importância do sétimo continente e fala da necessidade de o Brasil manter bases, militares e pesquisadores, em sintonia, atuando na região que, no decorrer do século 21, deverá se tornar a última fronteira na busca por recursos logísticos e naturais.
Qual é a importância estratégica da Antártica?
A importância estratégica da Antártica é enorme. Estamos falando de 14 milhões de quilômetros quadrados. Estamos falando de um continente que é maior do que a Europa, é quase do tamanho da América do Sul, e que detém 70% da água doce do mundo. A Antártica também tem grandes reservas de petróleo, gás natural, diamante, nióbio, ouro, o que você quiser. E são reservas inexploradas. Não dá para ignorar que 8% do planeta, com todas essas riquezas, e tão próximo do Brasil, não tenha a importância reconhecida. O Brasil é o sétimo país mais próximo da Antártica. Se você estiver em Porto Alegre, você está mais próximo da Antártica do que de Macapá. A Antártica afeta nosso clima, os regimes de chuva. As supersafras de soja dependem muito da questão da irrigação, da chuva, dos recursos hídricos. Essas chuvas são ditadas pelo que acontece na Antártica. A Antártica é uma espécie de ar condicionado do planeta. Não é à toa que as grandes nações estão lá.
Sabemos quais recursos naturais existem lá?
Sabemos o que existe, e onde está. Existem alguns mapeamentos, mas não se fala muito sobre isso. Teoricamente os países só podem fazer prospecção para fins científicos. Alguns projetos de escavação científica acabam esbarrando em recursos minerais. Sem falar no petróleo, no mar, e nos recursos vivos, como o krill, peixes, moluscos de exploração comercial liberada.
O senhor acredita que, depois de 2048, vai haver uma corrida na direção do continente?
Vai depender muito do contexto na época. Acredito que eventualmente o tratado vai cair, no futuro, e aí vai começar uma busca desenfreada de recursos de Antártica. Em algum momento isso vai acontecer. E o Brasil precisa estar preparado para isso.
Qual o risco de não dar importância para a Antártica?
É perder o assento no Tratado Antártico, que nos coloca em posição de igualdade com as grandes nações do mundo. Além disso, quando todos os recursos naturais do planeta tiverem se exaurido, ainda vai sobrar a Antártica. Eu imagino que os mesmos olhos gananciosos que hoje olham para nossa Amazônia vão se voltar para a Antártica no futuro a médio prazo. Se desistirmos da Antártica, vamos perder essas reservas no futuro. Então é importante que o Brasil não tire o pé de lá. E para manter assento no tratado é obrigatório desenvolver pesquisas científicas na região.
Que pesquisas são desenvolvidos lá?
Atualmente o Brasil desenvolve 20 projetos de pesquisa em locais diferentes da Antártica. São divididos em ciências da terra, ciências da vida e ciências atmosféricas. Então tem gente da oceanografia, da microbiologia, tem gente que estuda fungos com resultados muito interessantes, bioprospecção, estudo de novos antibióticos desenvolvidos a partir da Antártica. A Fiocruz está lá, procurando curas para doenças, estudando vírus. A maioria dos projetos está focado nos gelos, nas mudanças climáticas e na alta atmosfera.
Por que a cultura brasileira não valoriza a Antártica?
Somos ensinados desde crianças que o Brasil é o país do carnaval. Aqui é quente, é mulata, é praia, é carnaval. A gente tem que lembrar que o Brasil também tem lugares que neva, faz frio. Mas predominou essa cultura de que nossos cartões postais são as praias, as dunas, as palmeiras. Isso vem desde a colonização, para os europeus, que vinham do frio, o Brasil era um paraíso tropical. A Antártica não é ensinada nas salas de aula, não está nos noticiários. A gente imagina que a Antártica é um pedaço de gelo distante, com um urso polar em cima, se equilibrando – sendo que só existe urso polar no Ártico.
Seja na Antártica ou em outros setores, os militares brasileiros estão cientes da importância da aliança com a ciência?
Os militares têm na sua formação a questão da Antártica. A Marinha brasileira viaja até lá há muito tempo, a Aeronáutica tem um esquadrão especializado para voar até lá. Já o Exército não tem um envolvimento tão direto com o assunto, ainda que esses temas sejam abordados, inclusive na Escola Superior de Guerra. Os militares que chegam ao generalato, passaram pelos cursos de formação do Exército, têm essa visão. Eles sabem que a ciência é importante para o Brasil, e para a Antártica.
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E os pesquisadores brasileiros, atentam para a questão estratégica e de defesa nacional?
Os cientistas brasileiros não atentam para a importância estratégica do que fazem. Eles gostam de ficar nos laboratórios deles, mas não percebem a importância estratégica do que fazem. Cabe a nós, pesquisadores do assunto, dialogar, solicitar o apoio dos militares.
Quando foi que o senhor se interessou pela Antártica?
Desde menino, eu gostava das histórias dos exploradores do início do século 20. Passou o tempo, me especializei em botânica tropical, fui para lugares como Indonésia, Malásia, Amazônia. Até que, durante o meu doutorado, esbarrei em muitas perguntas que havia sobre a Antártica, a distribuição de plantas, as dispersões, o fato de que encontramos cinzas das queimadas da Amazônia na Antártica. Fui picado pela mosquinha antártica, e hoje sou apaixonado pelo lugar.
Entrevista realizada por Tiago Cordeiro – DPL e cedida com exclusividade ao Conexão Política.