Com certa frequência alunos e ex-alunos vêm me agradecer pelas aulas ministradas e pela humanidade ou atenção que, de alguma forma, lhes dediquei ao longo da convivência acadêmica, ainda que esta tenha se dado por um período de tempo muito reduzido. Causa-me surpresa tal reconhecimento e mesmo o expressar de gratidão, tantas vezes reiterada. Não raro, sem compreender a razão para tanto, me questiono, de um lado, a respeito de que ação minha o teria motivado e, por outro, o que levara aquele indivíduo à necessidade de se expressar nestes termos para mim. As respostas para estas diferentes indagações certamente estarão interligadas. Apesar de intuir, nada conclui em definitivo a este respeito. Talvez precisasse questioná-los diretamente, o que me reservo o direito de não fazer, para não causar-lhes qualquer incômodo.
Por inúmeras vezes, pois mais que me esforce em buscar trazer à memória a real motivação do gesto discente, termino por assumir não ter a mínima noção do que realizara para receber tal gentileza, que tanto conforta e incentiva a seguir adiante, mesmo diante de todas as dificuldades das tortuosas vias do ensino superior em uma universidade pública brasileira. E bem as conheço, pois, no próximo mês de novembro, completo 27 anos de docência em uma IFES, ao que cabe somar outros anos dedicados à graduação e ao mestrado, completados antes de iniciar a carreira docente.
Creio que o vazio desse esforço de trazer à lembrança o fato que se destacara no viver discente se dá porque não agira ou fizera nada além do que fora moldado para ser desde sempre, como pessoa, pai, esposo ou profissional, sobretudo quando criança, pelos valores e ensinamentos maternos e paternos, em especial e de outros familiares, em suas distintas dimensões. Tenho plena consciência de que este é o meu jeito de ser, a minha essência. Não saberia viver de outra forma e, tampouco, faço absolutamente nada para agradar deliberadamente aos demais em meu cotidiano, embora tenha plena consciência do que não devo fazer a outrem somente para ou por poder desagradá-lo. E não há nenhum embate entre estas duas percepções. Compreendi, desde cedo, pelo exemplo doméstico, que viver é missão, dar em tudo o melhor de si, sem, contudo, abrir mão de si!
Lembro-me de uma discussão passada entre o meu pai, já médico das antigas, e um de seus ex-alunos, que naquele tempo atuava profissionalmente há alguns anos e que, demonstrando certo dissabor, questionava-lhe, no entender dele, acerca do baixo valor de suas consultas. Dizia o outrora pupilo que o valor que ele considerava quase irrisório para um profissional do “gabarito e experiência” do mestre, poderia ser percebido por alguns como um demérito, pois era cultural o “barato” ser considerado de má ou, pelo menos, de qualidade duvidável. Lembro-me bem da resposta à proposição. Disse-lhe o velho Antonio Nunes – sim, tenho a honra de levar o nome de meu pai – que de pouca serventia teria o saber acumulado se este não pudesse ser acessível àqueles que dele precisassem. Que a escolha profissional realizada não tivera lugar para ou na intenção de auferir riqueza, mas que se contentava em alcançar vida digna para si e para os seus. E que o valor cobrado pela consulta era o valor que considerava justo para a tarefa e isso lhe bastava! Dito isto, o pretenso debate não prosseguiu…
Lembro-me, também, das críticas que, em ambiente reservado, o velho Nunes fazia àqueles a quem considerava “mercadores da medicina”, que à época cobravam valor muitas vezes superior àquele cobrado pelo meu pai em suas consultas, nas quais recebia com muita atenção cada um de seus pacientes. E não era por lhe faltar reconhecimento ou competência no exercício do mister. Era, apenas, uma questão de princípios. E o seu comportamento foi exemplo vivo para os filhos e para alguns de seus ex-alunos. Ainda hoje me pergunto qual a razão de alguns profissionais, não apenas da área médica como também de outras carreiras, cobrarem valores que podem ser considerados exorbitantes, inacessíveis para a maioria da população. De que serve o saber se não a serviço de sua pronta utilização em prol dos demais? O quê justifica a seleção de clientela pela capacidade de remuneração imediata? Creio que todos nós temos possíveis respostas para estas questões, não é verdade? Mas, não cabe aqui expô-las. Afinal, o intuito deste texto é tão-somente o de levar cada um dos leitores à reflexão sobre a vida e o viver em sociedade.
Alguns dias atrás, bem poucos, em um grupo profissional de aplicativos de mensagens, o que se tornou bastante comum nos dias atuais, uma das colegas informou aos demais que se afastaria em razão de estar no terço final do período gestacional e que, após cumprir a licença maternidade, regressaria à ativa e ao convívio dos demais por aquele meio. Nos dois dias que se seguiram, quase a totalidade das mensagens era para parabenizar e desejar à colega uma boa hora e que a criança, sua primogênita, preenchesse a vida daquela família de muitas coisas boas. Enviar palavras positivas e boas energias é sempre um gesto de cordialidade e de apreço, não é mesmo? Acredito que fui o único a não enviar-lhe, por intermédio do grupo, votos de felicitações assim como feito pelos demais. O fiz em privado. A colega ficou imensamente feliz com os ingênuos versinhos em rima com o nome da nascitura, que a ela enviei por este mesmo meio. Dias depois, fui interpelado por um dos membros do grupo se me esquecera de interagir com a gestante. Disse-lhe que não. E perguntei qual a razão para tal questionamento. Constrangido pela minha resposta, confessou que acreditara que não houvesse feito o contato, como comentara outro participante do grupo, pois a mensagem de todos estivera exposta no grupo, exceto a minha.
Ora, a mensagem era para ser apreciada pela única e real destinatária ou por todos daquele grupo? A mensagem foi enviada para felicitar a futura mamãe ou para obter aprovação ou aplausos dos demais membros do grupo?
E assim a vida segue… Muitos agem buscando a aprovação, simpatia ou outras benesses dos coletivos nos quais possam estar inseridos. E se houver valores e expectativas dissonantes entre dois ou mais destes coletivos, não é de se surpreender que alguém aja de modo disforme e até contraditório em grupos distintos. E isso é grave, não apenas porque leva à perda da identidade, mas também, em dado momento, da confiança que possa ser depositado em cada ser. Tenhamos a certeza de que, na atualidade, com a facilidade de acesso a múltiplos meios de comunicação, bem como pela velocidade destes, não tardará a se espalhar notícia acerca da “inconsistência” dos valores e do comportamento de um determinado indivíduo. Ah, e como fatos dessa natureza – sejam verdadeiros ou não – costumam circular como rastilho de pólvora… Em decorrência disso, um valor fundamental para a vida social é destruído e pode se perder para sempre: a capacidade de acreditar no outro, sem ressalvas! É preciso, pois, urgentemente, refletirmos a esse respeito e sobre como resgatar e solidificar em nosso país, em nossas crianças e em nossas famílias este valor.
Viver para os outros, enquanto princípio de reciprocidade social, é inegavelmente necessário ao nosso bem viver. Este é um fundamento cristão. Viver para “os olhos” dos outros, não! Pense nisso.
Para concluir, reproduzo abaixo a dedicatória firmada para os meus amados pais quando da publicação de meu primeiro livro técnico. Hoje, duas décadas depois, reafirmo estes sentimentos:
“Para minha mãe que me ensinou, fazendo-me acreditar e renovando em mim, a cada dia, a crença de que acima de tudo, está e existe a sublime grandeza da alma humana”.
“Para meu pai que me ensinou o amor pela academia, mostrando-me que o verdadeiro profissional sente mais prazer por sua obra do que pelos benefícios, de qualquer natureza e grandeza, que esta lhe possa proporcionar.”