Recentemente Carlos Andreazza apresentou, em sua coluna no O Globo, a visão do que ele chama de “bolsonarismo”, o qual trato com aspas pois não consigo identificar as mínimas condições para definir o fenômeno como uma ideologia, pois não há um programa coeso que o sustente como tal.
Fazendo muito esforço, podemos considerar o termo como descritivo para o movimento que levou à eleição de Jair Bolsonaro.
Com a chamada “O que é o bolsonarismo?”, Andreazza já traz no lead a sua conclusão: “Em matéria de objetivo, o bolsonarismo em nada difere do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado”.
Ora, qualquer player político tem como objetivo permanecer no poder e controlar o Estado até determinado ponto. O nível desse controle é o que define a diferença entre um movimento político democrático e um projeto de poder totalitário. No caso do lulopetismo e da esquerda em geral, o processo é gramsciano, ou seja, prediz a ocupação de todos os espaços na sociedade onde há alguma relação de poder, dentro e fora do Estado, até chegar ao ponto da tão almejada revolução socialista sem a necessidade de nenhum processo revolucionário violento, resultando num sistema totalitário imposto aos poucos.
Não há como fazer um paralelo entre o objetivo do lulopetismo e o do “bolsonarismo”, até porque o último representa uma reação da sociedade ao primeiro e segue um script nitidamente liberal, ao buscar diminuir o tamanho do Estado e consolidar garantias individuais, como a liberdade de expressão, por exemplo. Como será feita a ocupação de espaço se a primeira medida do novo governo foi a dispensa de milhares de funcionários públicos, sendo que o seu programa define privatizações em escala e valorização da iniciativa individual, demonstrada pela MP da Liberdade Econômica? Além do mais, o projeto da esquerda para o país segue a lógica marxista de destruição da sociedade para a criação de uma nova, baseada nas utopias podres que só causaram destruição e morte onde foram aplicadas, enquanto o “bolsonarismo” é a representação do desejo da maior parte do povo em restituir valores conservadores.
Em seguida, o autor inicia a explicação sobre o “bolsonarismo” no contexto da onda nacional-populista presente na política mundial. Só há um problema aí. Como chamar de nacionalista um movimento que não tem a defesa da indústria nacional como uma das usas bandeiras, tampouco faz defesa da “cultura” brasileira corrente, nem cria ameaças externas como justificativa para políticas públicas? Parece mais uma espécie de civismo verde-amarelo utilizado para unir a sociedade em torno da iniciativa de saneamento da estrutura pública, corroída por décadas de corrupção endêmica e de assalto aos próprios valores fundamentais da civilização, como a capacidade do Estado de proteger o cidadão contra a violência ou o crime, através de um sistema de justiça que funcione, formado por leis adequadas e um aparato que as faça valer na prática.
Andreazza afirma que o “bolsonarismo” é marcado pelo desprezo à atividade política, dando como exemplo o modus operandi do próprio PSL, partido do presidente, que seria operado para fins “meramente utilitários”, sem nenhum tipo de “caráter e identidade”. Ora, não é possível fazer uma afirmação dessas sem dar conta da realidade política brasileira. Os únicos partidos com uma identidade clara são os que formam a esquerda, enquanto os demais serviram ao longo do tempo para apoiar o “lulopetismo” no processo de tomada do Estado e ser associado no saque multibilionário produzido. O próprio sistema político brasileiro é notadamente falho em produzir real representação popular. Não temos praticamente nenhum partido conservador e tudo é feito para frear qualquer renovação política. Poder e verbas são concentrados em caciques políticos que continuam dando as cartas em Brasília. O PSL surgiu como uma última alternativa de Bolsonaro para poder concorrer à presidência, é praticamente impossível que um partido tão jovem em termos práticos (tinha apenas um deputado) alcance uma identidade em tão pouco tempo.
Andreazza também atribui ao “lava-jatismo” um fator preponderante para o ambiente de “criminalização da política”, o qual alimentaria o “bolsonarismo antipolítico”. Novamente, se confunde situação corrente com fim ideológico. Não é preciso ser muito perspicaz para notar o grau de degradação alcançado pelas instituições brasileiras. Os valores transacionados pelos criminosos instalados no poder, com a ajuda dos bandidos na iniciativa privada, alcançaram mais de R$ 8 trilhões! Mais sério que o desvio foi o propósito do mesmo: comprar apoios, bancar eleições e se perpetuar no poder, além de ajudar a ditaduras amigas. Culpar a Lava-Jato pelo sentimento de repúdio ao establishment em geral é como culpar o termômetro pela febre. O que se combate não é a atividade política em si, mas sim a atividade política praticada nas últimas décadas e a consequente destruição das instituições.
O brasileiro, acossado pela criminalidade sem precedentes, por impostos escorchantes e por uma crise econômica cavalar, produzida justamente pelo tamanho excessivo do Estado que o esmaga e pelo nível astronômico de corrupção, econômica e intelectual, não tem apenas o direito, mas o dever de questionar o establishment, buscando a sua renovação, nos limites da prudência, mirando a instalação de uma República de fato. A manutenção da situação atual é simplesmente um escândalo para qualquer brasileiro minimamente informado e bem-intencionado.
Andreazza padece da doença típica do intelectual: a avaliação do mundo real pela régua do mundo ideal imaginado. No Brasil de Andreazza, os poderes funcionam, a representação política é assegurada, a justiça opera para coibir o crime, não para garantir a imputabilidade dos criminosos e o Estado não é um ente cujo único objetivo é escravizar aqueles que produzem para beneficiar grupos específicos. O Congresso é formado por Lordes, o STF tem nos seus quadros os melhores juízes da nação e protege a Constituição. Não passamos pela maior crise econômica da nossa história, tampouco tivemos a tentativa de instalação de um regime chavista no país. Vivemos em paz e segurança! Qualquer contratempo é apenas um acidente de percurso que não requer nada além de alguma crítica saneadora. Praticamente uma Suíça ameaçada por reacionários totalitários.
Saindo do mudo ideal e voltando para a realidade, não podemos deixar de comemorar o encaminhamento dessa crise pelas vias democráticas, mesmo obstruídas ao ponto do quase colapso. Houve a eleição de um presidente que representa a busca pela mudança, não pela “antipolítica”, mas justamente pelo reestabelecimento da democracia representativa e suas instituições. Queremos que a limpeza do país continue, com a retirada da vida pública daqueles que participaram da destruição do país. Queremos leis mais duras e que sejam implementadas, combatendo os altos índices criminais. Um STF que defenda a Constituição e não tenha como principal razão da sua existência a proteção aos criminosos nas altas esferas. Tudo isso pode e deve acontecer sem nenhum golpe ou criação de regime autoritário.
Para tal, é preciso que o Congresso assuma as suas prerrogativas e vote os projetos de acordo com o interesse dos seus representados, a Justiça garanta a continuidade da Lava-Jato e de outras operações que provoquem o afastamento da vida pública dos bandidos de sempre e a população continue a pressionar os poderosos, sempre que eles desviarem dessa rota em busca da autoproteção.
Infelizmente, Andreazza e outros que acompanham a sua postura enxergam mais riscos no processo de renovação política brasileira do que na manutenção do status quo. Caso essa seja a tese vencedora, perderemos talvez a maior oportunidade da nossa história para quebrar o infinito ciclo de pobreza material e moral que assola o país.
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