Na semana passada, houve uma audiência pública conjunta no Senado Federal sobre a Síndrome de Tourette, doença que manifesta movimentos involuntários e repetitivos, podendo ser motores ou vocais, simples ou complexos.
A principal reivindicação dos participantes da audiência foi a inclusão da Síndrome de Tourette (ST) no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). Pois, o Estado brasileiro tem negligenciado as pessoas com esse transtorno, excluindo deles a possibilidade de participar das cotas, atendimento prioritário e especial, principalmente no caso das crianças na escola e, da disponibilização gratuita dos medicamentos apropriados para tratar a síndrome pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O fato de uma pessoa portadora da síndrome de Tourette não ser reconhecida como deficiente, tem dificultado imensamente a sua vida e de toda a sua família. A qualidade de vida destes é prejudicada. E a falta de apoio, medicamentos e informações a respeito da doença levam ao isolamento social, a depressão e um grande aumento do nível da ansiedade.
Neste novo governo, o Brasil vem lutando pelos ‘Diretos Humanos Para Todos’ e abraçando o tema ‘Acolha a Vida’. Por isso, este é o momento para que os portadores da Síndrome de Tourette e suas famílias também recebam esse acolhimento com amor, tanto pelo Estado, quanto pela sociedade brasileira. E este amor começaria a ser demonstrado, pelo reconhecimento do portador da Síndrome de Tourette, como deficiente.
O Conexão Política entrevistou Amanda Santana, que é mãe de uma pré-adolescente de 11 anos, com a Síndrome de Tourette. Ela compartilhará conosco em uma entrevista, o seu intenso convívio com a síndrome e as lutas vividas diariamente como mãe, família e especialmente, as lutas de sua única filha.
Conexão Política: Como você descobriu a Tourette em sua filha?
Amanda: Em 2014, os sintomas começaram a parecer, não tinha um diagnóstico fechado, só desconfiávamos. Então, pedi para a professora, que também era psicóloga, observar minha filha e ajudar a descobrir se ela tinha a Tourette. Essa professora não estava preparada, nem como psicóloga. Durante a aula, ela parou na frente de minha filha e começou a imitá-la, para que ela parasse de fazer os tiques. Os tiques são incontroláveis e a professora fez minha filha passar vergonha e a humilhou. Aos 6 anos, ela teve uma crise forte. O corpo dela mexia todo e os professores assustaram, achando que era uma convulsão. Foi quando percebemos que se tratava da Tourette. Uma família, que ainda não tem um diagnóstico fechado de Tourette, sofre mais. Sofre com o desconhecimento.
Conexão Política: Como é conviver com a Síndrome de Tourette?
Amanda: A Tourette é muito individual, cada criança, tem suas dificuldades. E para cada dificuldade, há também diferentes fases. Algumas crianças têm dificuldade na escrita em uma fase, ou em outra, no cálculo, ou na leitura. Por exemplo, minha filha, por causa da ansiedade que vem acompanhado do Toque, para ler uma página de livro, ela tinha necessidade de voltar 30 vezes. Era um terror ela ler um único livro. E isso, a escola não vê, e acha que não existe.
O que as pessoas de fora veem, é a ponta do iceberg. É a família, dentro de casa que vê o resto. É muita coisa. Nós pais não conseguimos fazer planos para o futuro. Nem para sair de férias; fazemos planos, mas tudo é muito instável. É uma vida instável.
Conexão Política: Quais medicamentos sua filha usa para o tratamento da ST?
Amanda: Não existe medicamentos específicos para a Tourette, utilizamos outros remédios que são para outras doenças. Pois, a doença não é reconhecida e não há um tratamento específico. Só consigo remédio, através de um processo judicial e é muito burocrático. E como não há comprovações de que o remédio é para a Tourette, isso dificulta muito em conseguir provar judicialmente. Mesmo assim, o remédio conseguido ainda fica em falta. E sempre preciso solicitar uma nova receita. O SUS também não oferece todos os remédios.
Os remédios são caros, gasto 500 reais por mês. Quanto mais moderno o remédio, menos efeito colateral, mas são remédios mais caros, e o SUS não cobre. O SUS pede para o médico receitar outro que seja mais barato, mesmo não sendo a melhor opção para minha filha.
Há remédios que ainda não tem no Brasil e precisam ser importados. Para isso, precisamos de uma autorização judicial para importar, que pode demorar anos na justiça. O custo também é altíssimo, gasta-se 2 mil reais para importar dos EUA. O Brasil precisa estudar mais e liberar esses remédios no país.
Conexão Política: Como é a vida da sua filha na escola?
Amanda: Na escola, ela tenta se controlar o máximo, o que causa ainda mais estresse. E por isso, muitas vezes ela perde a concentração na aula para controlar os sons e movimentos. E perde a aula. Em casa, é onde ela descarrega. Ela chega em casa com muita obrigação e lição, mas não pôde aproveitar a aula. A atitude em casa difere da atitude na escola. Então, a escola acha que a mãe é que está exagerando, e se torna sua adversária, ao invés de ser sua parceira.
Minha filha sofre com os efeitos colaterais dos remédios fortes, cansaço, falta de concentração, visão dupla, e está em desvantagem com os outros alunos. E quanto mais pressão a escola coloca numa criança com ansiedade, mais os tiques pioram, é uma bola de neve. Escola é sempre um pânico. A criança com Tourette tem muitos problemas com o estudo. Ela tem uma grande desvantagem comparando com os outros alunos – os efeitos colaterais dos remédios, o controle dos tiques, as dificuldades de concentração – mas mesmo assim, ela é avaliada da mesma forma que os outros.
Conexão Política: Você e seu esposo já pensaram em mudá-la de escola?
Amanda: Nós pensamos em mudá-la de escola. Mas, um ambiente novo é pior pra criança com Tourette. Então, os pais ficam sem orientação e sem saber o que é melhor. As escolas pensam só no conteúdo pedagógico, não tem o trabalho de respeito ao próximo, não é acolhedora com as crianças com a Tourette.
Conexão Política: Quais as maiores dificuldades da criança e do adulto com a Tourette?
Amanda: Para os adultos, a maior dificuldade é arrumar um emprego. Já para a criança, é na escola. Minha filha sofre bullying velado, nas costas do professor. Fazem bullying, enquanto o professor não vê. Por exemplo, uma vez, um menino imitava os tiques da minha filha na sala de aula, sem a professora ver. Eu pedi para separar o menino e ela de classes, mas a escola não me deu ouvidos. Como resultado, ela teve crises de pânico, e não queria mais ir para a escola. Ao levá-la para a escola, eu tinha que dar várias voltas no quarteirão, e ela tinha medo e pânico pra entrar na escola. E nessas fases de crise, a escola não abona as faltas.
Conexão Política: Você disse que a Tourette tem fases. Qual a fase mais difícil da síndrome?
Amanda: A pré-adolescência é a fase mais difícil da Tourette, e é a idade em que as crianças são cruéis umas com as outras. Por exemplo, nos aniversários da minha filha, inventamos todo ano uma viagem, porque não tem como convidar essas crianças que a tratam com tanta crueldade. Na escola, ela é tratada como invisível. As meninas não a cumprimentam, não a aceitam por causa dos tiques. Os tiques fazem minha filha se sentir esquisita e ter uma baixa autoestima. Ela sofre muito e a escola não ajuda. Falam que minha filha é tímida e que precisa “arrumar mais amigas”.
Conexão Política: Como pais, o que vocês conseguem fazer para melhorar a autoestima de sua filha?
Amanda: Minha filha é muito talentosa, ela canta, toca instrumento musical de ouvido e surfa. Criamos uma conta no Instagram e deixamos aberto ao público. Postamos fotos e filmes dela surfando e ela recebe muitos elogios. Como nós fazemos, a escola também deveria ajudar a exaltar os talentos de minha filha. Contei isso para uma professora e ela comentou na classe com os alunos que “ama ver minha filha surfar no Insta”. Isso levantou a moral da minha filha na classe. As crianças ficaram curiosas e começaram a lhe perguntar sobre o surfe. O foco mudou do problema, para o talento. A escola também deveria ajudar a levantar a autoestima das crianças.
Conexão Política: No que a inclusão da Síndrome de Tourette (ST) no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) colaboraria?
Amanda: A lei ajudaria muito na escola. No ensino médio, minha filha teria direito a fazer uma prova com um ledor, teria direito a fazer uma prova com questões mais objetivas, provas de cálculo feitas separadas e com acompanhamento de um estagiário, para explicar perguntas com pegadinhas. As escolas querem que o aluno tire nota na média. Minha filha rala de estudar e não vai bem, porque as perguntas são formuladas com pegadinhas e ela não consegue ir bem. Com uma lei, eu poderia exigir mais coisas da escola.
Os professores e a direção sabem da condição de minha filha, mas ela não é avaliada de forma diferente. Hoje, a escola cria barreiras. Enquanto minha filha consegue levar, nós – a família – vamos levando. Mas, tudo o que eu peço na escola é uma luta. A escola deveria ser minha primeira parceira, mas ela é minha primeira adversária. Eu esperava uma escola mais acolhedora.
Alunos com dislexia tem direitos, e isso é bom. Mas minha filha não. A Lei Brasileira de inclusão – enquanto ela não for reconhecida, minha filha não terá direitos.
Conexão Política: Você falou muito a respeito das crises e o quão difícil essa fase é para estar na escola. A Síndrome de Tourette, sendo reconhecida como deficiência, resolveria isso?
Amanda: Melhoraria muito. As crianças faltam muito na escola, e não é frescura. A criança tem crises de pânico, gritos de tiques. Muitas vezes, tem que levar a criança de volta para casa. E a escola não abona as faltas, e nem permite fazer provas em casa, mesmo acompanhada de um estagiário ou assistente. Nem se a mãe implorar!
Os pais não querem levar a filha para deixar ter uma crise na escola. Uma criança, com Tourette em crise, será ainda mais humilhada na escola. Em períodos de crise, não dá para ir à escola. Um atestado resolveria.
Em fase de troca de remédios ou mudanças nas dosagens, ela também precisa de um afastamento da escola. Trocar remédios é um pesadelo, demora uns 2 meses para tentar estabilizar. E é um inferno na escola, que não abona falta, que não permite fazer prova separadamente numa biblioteca ou deslocar um professor, ou auxiliar em casa. A escola não deixa, não colabora.
Tivemos 2 anos letivos que foram dramáticos para todos. Minha filha passou por longas crises e não deixavam ela faltar. Um aluno com câncer, não perde o ano letivo, dentro do hospital, ele fez provas e tem aulas. E a criança com Tourette, às vezes precisa ficar em casa. Eu quero que minha filha tenha uma vida normal, mas tem essas fases com crises que não dá. A escola pensa que nós queremos apenas os benefícios. A pressão da escola só piora a situação. Na Tourette, tudo é instável, nada é definitivo. Uma colaboração da escola ajudaria.
Conexão Política: O que a criança com Tourette no Brasil precisa que ainda falta?
Amanda: Precisamos da lei a nosso favor e de uma parceria Família-Escola-Médico. Se a família, a escola e bons médicos não andarem juntos, não tem como dar certo. A escola tem que se unir à família. Senão, é muito complicado. E com a inclusão na Lei 13.146/2015, minha filha teria direitos que garantiriam a colaboração da escola.
Por o portador da Tourette não ser reconhecido como deficiente, não tenho acesso aos remédios, nem aos direitos na escola. Hoje ela é criança, e as dificuldades são na escola. Quando ela for adulta, a dificuldade será no mercado de trabalho, quando não conseguir afastamento do emprego pelo INSS, durante as crises de dores e ansiedade.
Conexão Política: Como é ser pai e mãe de uma filha com Tourette?
Amanda: Tentamos fazer com que ela tenha uma rotina normal, como todas as crianças. Tentamos evitar tudo o que possa gerar estresse, surpresas e ansiedade. A ansiedade gera irritação, a irritação gera explosões de raiva, que são típicos da Tourette – o descontrole emocional. A ansiedade é muito grave na Tourette, e é muito difícil de controlar.
A família não consegue controlar imprevistos, e uma formiguinha vira um elefante. Vivemos uma rotina de tensão, sempre preocupados com o que vai acontecer. Em fases tranquilas tudo bem, mas em crises, às vezes não conseguimos fazer toda a rotina de família. Temos que cancelar compromissos para atender às necessidades dela.
É dedicação 100%. Temos que ter uma paciência enorme e nos controlar para não brigar demais. Mas, temos também que corrigi-la, quando está errada. Nós nunca sabemos quando temos que relevar algumas coisas, porque sabemos que ela reage exageradamente, por causa da Tourette. E nunca sabemos o limite, todos os dias vamos dormir, sem saber se fomos duros demais, ou se fomos leves demais e deixamos de agir. Tentamos levar a vida com alegria, mesmo destruídos por dentro, para que ela não sinta. Minha filha é valente e esforçada. Temos achado força em Deus, porque não é fácil.
Eu choro todos os dias, vou dormir chorando. Fico brava com Deus. Tem dia que não sei mais como manter a fé, que não vejo uma luz no fim do túnel. Não sei se vou aguentar mais 5 ou 10 anos. Não queremos imaginar uma vida assim pra ela. Você perde o prazer, muitas vezes eu não tenho mais o prazer da vida, perde o colorido. Mas, aprendo a dar valor às coisas pequenas da vida. Cada pequena melhora da minha filha, é uma grande alegria.
É uma montanha russa de emoções. Um dia tá tudo bem, no mês seguinte, tudo piora. O nosso emocional fica muito instável. Os pais também precisam de ajuda e tratamento. Precisa de muito equilíbrio emocional.
Tem fases, em que a gente consegue esquecer que ela tem a Tourette. Uma média de 6 meses. Mas sempre no caminho, tem uma troca de remédios, aparece um Natal, um aniversário e uma volta às aulas, que traz um pico de ansiedade, e volta tudo.
Conexão Política: Em meio às lutas diárias, quais são os momentos de alegria para vocês?
Amanda: Os momentos em que levamos ela para surfar. Se morássemos em frente à praia, poderíamos levá-la para surfar todos os dias. O mar e o surfe fazem ela relaxar bastante. Ela também gosta da companhia da família. Como minha filha se decepciona com os coleguinhas na escola, ela quer estar com o pai, a mãe e os avós. Ela encontrou força na família, que precisa de paciência e compreensão.
Conexão Política: Qual mensagem você gostaria de deixar para o leitor?
Amanda: Uma frase, de uma grande amiga que tem um filho de 17 anos, com Tourette. Essa amiga me sustentou em fé e oração, durante os piores momentos de nossa vida.
“Creia, o sol voltará a brilhar.”
Eu trago essa frase comigo esses anos todos, sempre que me entristeço. Hoje mesmo, é um dia que preciso me lembrar que o sol voltará a brilhar.
Deus também falou forte comigo, através de um versículo bíblico: “…a tua causa está diante de Deus, portanto, espera nEle” (Jó 35:14).
Compreensão e respeito
A Síndrome de Tourette não tem cura, mas se houver direitos garantidos por lei, compreensão e respeito de quem convive com os portadores da síndrome, a qualidade de vida destes e de suas famílias melhoraria, e muito.