A empresa de tecnologia na área de saúde Philips sabia há anos sobre as vendas suspeitas de equipamentos médicos ao antigo Governo Lula (2003-2010). A agência de notícias Reuters, que viu os e-mails internos enviados por promotores brasileiros como prova, informou que a empresa já sabia muito antes que o escândalo de suborno em sua filial brasileira viesse à tona no ano passado. O ex-funcionário, José Israel Masiero Filho, que levantou o caso em 2010 foi mais tarde demitido.
Desanimado após a demissão, Masiero desistiu do assunto — até 2014, quando o Brasil foi engolido por um escândalo de corrupção centrado na Petrobrás, a Lava Jato, que derrubou líderes dos escalões mais altos do empresariado e da política.
Masiero criou esperanças e entrou em contato com procuradores federais.
Entenda o caso
De acordo com a Reuters, o denunciante que trabalhava na subsidiária da Philips, a Dixtal Biomédicas Indústria e Comércio Ltda., observou irregularidades em 2010 em três contratos do Governo Lula para produtos da Philips e da Dixtal, através de um obscuro intermediário. Ele suspeitava que o intermediário tivesse usado propinas para ganhar contratos com o antigo governo e soou o alarme internamente.
Entre outras coisas, o denunciante enviou um e-mail ao chefe da Philips Healthcare, Steve Rusckowski, sobre suas suspeitas. Apesar dos avisos, a Philips continuou os negócios.
Em meados do ano passado, a justiça brasileira invadiu a Philips. Outras empresas médicas também são suspeitas de pagar subornos para obter contratos governamentais lucrativos.
Em 2010, a Philips disse em uma resposta que recebeu uma “denúncia anônima” e a investigou. Segundo a empresa, “não havia provas diretas de violações”.
No entanto, o escândalo veio à tona e a Philips reforçou suas regras internas. A empresa afirma cooperar com as autoridades brasileiras.
Alto escalão
Ainda em 2010, alegações de má conduta chegaram até os escalões mais altos do conglomerado segundo autos registrados por procuradores federais. Masiero alertou ao menos três outros executivos de alto escalão. Entre eles estava Steve Rusckowski, ex-presidente-executivo da Philips Healthcare, a maior divisão da empresa.
Rusckowski atuou como presidente-executivo da Philips Healthcare até abril de 2012. Hoje ele é CEO da Quest Diagnostics, com sede em Nova Jersey, nos Estados Unidos.
Os alertas de Masiero foram detalhados em e-mails, memorandos internos e autos vistos pela Reuters.
“A Philips deveria considerar que, ao aprovar e aceitar estas vendas, será envolvida em atividades ilegais se descoberta”, escreveu Masiero a Rusckowski em um e-mail de 14 de outubro de 2010.
Ainda assim, a empresa continuou a vender ao intermediário brasileiro para cumprir os contratos com o Ministério da Saúde do Governo Lula, como apontam faturas.
Ministério da Saúde
No Governo Lula, José Gomes Temporão foi o Ministro da Saúde durante boa parte do segundo mandato do governo Lula, empossado em março de 2007 e sucedido em 1 de janeiro de 2011.
Durante sua gestão no Ministério da Saúde, ele defendeu a posição de que o aborto é uma questão de saúde pública, o que causou indignação dos conservadores brasileiros.
Também por ele, ocorreram alguns avanços da agenda LGBT. Como por exemplo, a defesa da criminalização da homofobia, a assinatura de duas portarias: uma permitindo que enfermeiros e médicos do SUS passassem a se dirigir à pacientes transexuais e travestis por seu nome de escolha ao invés do de registro e a outra, autorizando a realização de cirurgia de mudança de sexo através do SUS.
Investigação de corrupção na Saúde
Atualmente, a Philips é um dos alvos de uma investigação crescente sobre a corrupção em contratos médicos no Brasil. Os procuradores responsáveis pelas investigações disseram que ainda estão nos estágios iniciais.
Eles alegam que a Philips e outras multinacionais conspiraram com intermediários para pagar subornos por contratos públicos, sobrecarregando o sistema de saúde do Brasil com preços inflados para recuperar o gasto com propinas.
No ano passado, 24 pessoas foram acusadas por sua ligação com o suposto esquema, e hoje todas estão sendo julgadas no Rio de Janeiro. A alemã Siemens e as norte-americanas Johnson & Johnson, General Electric e Stryker, todas grandes fabricantes de equipamentos médicos, foram implicadas no inquérito.
Nos EUA, o FBI, o Departamento de Justiça e a Securities and Exchange Commission (SEC, a CVM norte-americana) iniciaram suas próprias investigações sobre a suspeita de corrupção na venda de equipamentos médicos no Brasil e também na China, segundo pessoas a par do assunto.
O delator Masiero disse estar cooperando com todas estas agências. A Philips disse à Reuters que está “analisando” solicitações do Departamento de Justiça e da SEC relacionadas ao inquérito do Brasil.
Intermediário misterioso
Masiero, hoje com 52 anos, foi contratado em 2006 como gerente de exportações da Dixtal, onde chegou a ser o principal executivo de logística e da cadeia de suprimento da empresa de equipamentos médicos sediada em São Paulo, no início de 2009. A Philips comprou a Dixtal em 2008.
No início de 2010, Masiero notou o que considerou irregularidades em três grandes contratos concedidos pelo Ministério da Saúde. Os acordos, um deles para 750 desfibriladores da Philips e os outros para um total de 3.972 monitores de sinais vitais da Dixtal, tinham um valor combinado de 68,9 milhões de reais, segundo registros governamentais.
Masiero disse ter estranhado que a Philips não tenha competido diretamente por uma fatia tão grande do negócio. Nem a Philips nem a Dixtal apresentaram propostas, de acordo com registros governamentais de propostas de orçamento vistos pela Reuters.
Ao invés disso, os contratos foram dados à Rizzi Comércio e Representações Ltda., uma empresa brasileira de suprimentos médicos pouco conhecida. Encarregado de encaminhar os equipamentos à Rizzi Comércio, Masiero ficou surpreso ao descobrir que seu endereço de cobrança era uma pequena fachada de loja com a tinta descascando, localizada em um bairro decadente de São Paulo.
“Foi um alerta vermelho imediato para mim”, disse Masiero à Reuters.
Além disso, o Ministério da Saúde estava pagando bem acima dos preços de mercado pelos equipamentos, disse Masiero, algo incomum para um cliente grande com poder aquisitivo. Em 12 de fevereiro de 2010, por exemplo, Masiero alegadamente recebeu um e-mail de um executivo de vendas da Philips, Frederik Knudsen, orientando-o a entregar o primeiro lote de 60 desfibriladores à Rizzi Comércio, que adicionou 67% ao seu preço, de acordo com a correspondência incluída nos autos.
“O valor que deveria estar na fatura é o que foi combinado com o Ministério da Saúde” —16.700 dólares por unidade— “e não aquele pelo qual o vendemos à Rizzi (9.991 dólares)”, segundo o e-mail alegadamente de Knudsen visto pela Reuters.
Procuradores dizem que a Philips e a Rizzi Comércio conspiraram para disfarçar e reaver o custo dos subornos inflando os preços —e com isso defraudando os contribuintes brasileiros.
Acusados
Knudsen, que a Philips confirmou ainda trabalhar na companhia, é um dos que estão em julgamento no Rio. Outro é Daurio Speranzini, que comandou as operações da Philips Healthcare na América Latina durante sete anos, foi para a GE em 2011 e deixou esta última em dezembro passado. Em agosto passado, ambos foram acusados de extorsão e fraude.
Os irmãos Wlademir e Adalberto Rizzi, proprietários da Rizzi Comércio, também estão em julgamento por extorsão e fraude.
Acionando o alarme
Apreensivo com os acordos com a Rizzi Comércio, Masiero notificou a equipe de Reclamação Global da Philips em Amsterdã, em 20 de janeiro de 2010, por meio de um e-mail de comunicação interna.
A Philips enviou Caroline Visser, então chefe de Reclamação Global da Philips, ao Brasil para se encontrar com Masiero, em março de 2010. Ela prometeu uma investigação rápida, de acordo com e-mails que os dois trocaram.
Dois meses depois, Masiero foi transferido da Dixtal para um cargo de logística da Philips em São Paulo, o que ele considerou um rebaixamento e um esforço para silenciá-lo —e as remessas continuaram, como mostraram as faturas.
Frustrado, em 14 de outubro de 2010, Masiero enviou um e-mail a Rusckowski, chefe da divisão de saúde da Philips.
Masiero expressou preocupações sobre a Rizzi Comércio e o uso de um intermediário desconhecido, a Moses Trading American, para a compra de desfibriladores Philips fabricados nos EUA em seu nome para exportação para o Brasil.
Muito mais típico, disse Masiero à Reuters, seria a Philips vender diretamente à Rizzi. A desconfiança de Masiero só aumentou quando ele descobriu que o endereço da Moses Trading American constante das faturas da Philips era de uma casa particular em um campo de golfe no subúrbio de Phoenix.
“A operação de vendas da Moses Trading é claramente suspeita”, escreveu Masiero a Rusckowski.
Segundo e-mails vistos pela Reuters, Rusckowski encaminhou a mensagem de Masiero a Clement Revetti, Jr., principal executivo legal da Philips Healthcare. Revetti agradeceu Masiero e lhe pediu para não voltar a contatar o CEO.
Masiero contrariou esta ordem, e em 9 de novembro de 2010, voltou a mandar um e-mail a Rusckowski e Revetti sobre suas desconfianças.
Em 4 de março de 2011, Masiero disse que debateu suas suspeitas mais uma vez com Caroline Visser pessoalmente em São Paulo. Ele foi demitido naquele mesmo dia, e disse que não recebeu nenhuma justificativa para a demissão.
Documentos exigidos pelas leis trabalhistas brasileiras mostram que a Philips demitiu Masiero “sem justa causa”, o que significa que a empresa não alegou problemas de desempenho.
A Philips não quis falar sobre Masiero ou as circunstâncias de sua demissão.
Quanto à Moses Trading American, procuradores brasileiros dizem que a operação é administrada por um peruano chamado Oscar Moses, que estão investigando por sua ligação com uma série de acordos de equipamentos médicos supostamente fraudulentos no Brasil.
Masiero
José Israel Masiero Filho foi corajoso, íntegro e essencial para que as investigações dos procuradores federais desvendassem o esquema de corrupção.
“Suas informações foram essenciais para nos ajudar a desmontar este esquema”, disse Marisa Ferrari, uma das principais procuradoras do caso.
Enquanto isso, Masiero continua desempregado. Ele disse que está em uma lista negra no Brasil, e recentemente ele e a família se mudaram para um país que ele preferiu não revelar.
Fonte: Reuters.
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