Por Edgard Leite, Diretor do Instituto Realitas*
O culto às imagens foi uma forma de consolidar, na União Soviética, o culto às mentiras. Principalmente porque o conteúdo das imagens, apresentado como verdadeiro, era sempre mentiroso.
Mas era necessário torná-las, as mentiras, objeto de adoração, sagradas. Dogmáticas.
A narrativa mentirosa, no caso da União Soviética, e no discurso de esquerda do século XX, atingiu um patamar de política oficial. Realmente impressionante.
E se tornou um vício, em decorrência de seus efeitos inebriantes no campo político.
Isso por conta do caráter amoral do sistema, o que permitiu que a utilização da mentira, como arma política, ultrapassasse todos os limites.
A mentira é, em si, evidentemente, um ato moralmente condenável.
A proposição comunista era a de que a mentira poderia ser proferida e alardeada sem nenhum outro objetivo além de causar dano a outro, no decorrer das querelas políticas. Mas não necessariamente visando alguma utilidade ou o bem de alguém. Seu objetivo era apenas a destruição.
Destruir a capacidade, de quem a recebia e reproduzia, de observar e reconhecer o real.
Isso a tornava particularmente grave. O segundo pior tipo de mentira, segundo Santo Agostinho. Tal mentira qualificava uma politica estruturada no distanciamento da verdade e na tentativa de destruição da percepção do real.
A narrativa política era, portanto, absolutamente desordenada e intencionalmente voltada para causar confusão nas consciências.
Afastava as pessoas da realidade, da sensatez. Colocava-as num mundo de falsas ideias, no qual não tinham condições de avaliar a realidade. E, por isso, fáceis de serem manipuladas. Pois precisavam de guias.
O juízo do que era verdadeiro ou falso deixava, assim, de estar ao controle do senso comum. A mentira substituía o real.
Consolidava um universo ilusório e etéreo. No caso, expresso visualmente através do realismo socialista.
Tal movimento revelava que a mentira tinha, como último objetivo, legitimar uma autocracia, uma ditadura, uma tirania. A partir da confusão da sociedade.
A afirmação, por exemplo, de que o grande líder bolchevique, fundador do regime, Leon Trotsky (1879-1940), e todos aqueles que foram envolvidos nos Processos de Moscou, eram espiões, agentes do Serviço Secreto Britânico, reacionários e coisas do gênero, era, claramente, e de forma escandalosa, uma mentira.
Como seria possível que Trotsky, Kamenev, Zinoviev e tantos políticos comunistas de primeira linha fossem traidores? Assim o eram, dizia Stálin, o Estado, a mídia, os livros, as músicas e os filmes.
Na verdade, esses “inimigos do Estado”, alguém podia balbuciar, eram apenas políticos que tinham seus próprios objetivos pessoais e corporativos e seus próprios modelos para consolidar seu poder. E que utilizaram mentiras para chegar ao poder também. Embora não com tanta competência ou amplitude, como seus adversários.
A utilização da mentira, ilimitada, contra eles, visava, é claro, desqualificar qualquer crítica verdadeira que pudessem fazer contra seus oponentes.
Mas, principalmente, objetivava confundir o juízo de todos, colocando em dúvida a capacidade de entender o que acontecia, de fato. Principalmente em se tratando de mentiras tão exageradas.
Mas apresentadas como verdades absolutas. Inquestionáveis.
Assim, quando Trotsky estava em desgraça, a sua longa cumplicidade, e amizade, com Lenin foi negada. Décadas de convívio respeitoso foram desqualificados.
As fotos em que aparecia ao lado do fundador da URSS foram adulteradas, para que o passado também fosse alterado. A mentira do presente se estendia para o passado.
Mas não se lembravam todos que Lenin era amigo de Trotsky? Sim. Mas as lembranças eram colocadas em dúvida por textos, livros, filmes, nas quais a mentira dessa inimizade era repetida até a exaustão.
Nessa confusão, esperava-se que as pessoas dissessem: “estamos perplexos, não sabemos mais o que é verdadeiro. Diga-nos o que pensar!”
Em 1956, no discurso Secreto ao XX Congresso do PCUS, Nikita Kruschev trouxe uma carta de Lenin onde este criticava Stálin e elogiava Trotsky.
A verdade desse documento era inquietante. Mas a mentira crescera tanto e se tornara tão fantasticamente crível que houve quem dissesse que tal carta não era verdadeira. Pois há sempre aqueles que não querem ver a verdade.
E, no entanto, a verdade era ainda maior do que o exposto naquele bilhete: Lenin, Trotsky e Stalin, foram, na verdade, cúmplices. Amigos íntimos.
Onde estava a verdade, portanto? Na realidade, que todos diziam que não o era? Nas imagens, falsas, de um passado irreal ou de um futuro radiante?
No interior de consciências divididas, de pessoas incertas sobre a natureza da verdade, abria-se o espaço para o exercício da tirania.
O medo, esse sim, era verdadeiro. Caso você não acredite nesta mentira, também morrerá.
O poder desse discurso mentiroso mostrou-se absoluto no pensamento de esquerda, orientado pela União Soviética.
A mentira imergia as consciências num mundo vago e confuso. As pessoas já não acreditam muito em si próprias, mas todas temem o isolamento e a morte.
O Estado, por outro lado, oferecia coisas materiais, pequenas, mas significativas, para ajudar a aceitar esse mundo fantástico. E todos, assim, se contentavam em delegar o juízo aos ditadores, e em acreditar que o futuro seria melhor, como eles diziam.
O que era também uma mentira.
E, como ficou provado com o fim da União Soviética, no futuro estava o fim da mentira.
Sempre se ensinou, dentro e fora da União Soviética, que a URSS era uma sociedade na qual as nacionalidades estavam em desaparecimento, onde o espírito nacional era superado pelo internacionalismo proletário.
Em 1991, no entanto, quando a União Soviética foi dissolvida, a bandeira vermelha com a foice e martelo foi retirada do Kremlim.
Em seu lugar foi erguida a bandeira da Rússia. Ou seja, a verdade apareceu. A União Soviética não era uma verdade. Era uma mentira, em si. A Rússia sim, era a verdade oculta sob capa tão grande de falsidade.
O problema de todo esse culto à mentira é que a sua política tem um fôlego essencialmente limitado. A verdade sempre aparece. Mas o estrago que ela causa, enquanto isso não acontece, é imenso.
E, nesse sentido, o desastre causado pela União Soviética nesse campo foi gigantesco. Foram destruídas vidas e consciências. A mentira mostrou sua potência como força política por três gerações.
Mas potência impotente.
Porque mais força tem a verdade.
* Artigo originalmente publicado por Edgard Leite Ferreira Neto no site do Instituto Realitas.
Edgard Leite Ferreira Neto é membro do Movimento Docentes Pela Liberdade (DPL) e Diretor Executivo do Instituto Realitas, uma instituição fundada em 2017 que tem por objetivos o fortalecimento de tendências intelectuais inovadoras e a abertura de novos horizontes para o pensamento brasileiro.
Edgard Leite é Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, e Professor de História em duas Universidades públicas no Rio de Janeiro. É integrante do Conselho Diretor da Sociedade Internacional de Estudos Jesuítas (Paris). E, atualmente, é Membro Titular e Vice-Presidente da Academia Brasileira de Filosofia e membro do Conselho Executivo do Centro de História e Cultura Judaica (Rio de Janeiro). Ele também é pesquisador integrado ao Projeto Pombalia (CLEPUL – Universidade de Lisboa).
Vídeos do Instituto Realitas
O Instituto Realitas lançou uma séria de vídeos no Youtube que analisa o papel da mentira na construção do regime soviético, chamando a atenção para seu papel desestruturador da capacidade de entendimento da verdade. Elemento importante para a manipulação política e para a instituição da ditadura.
O ciclo de vídeos produzido por Edgard Leite mais recentes é “A Experiência Soviética”, em cinco vídeos:
A experiência soviética (I): o problema da igualdade
A experiência soviética (II): o problema da imagem
A experiência soviética (III): o problema do ressentimento
A experiência soviética (IV): o problema da subjetividade
A experiência soviética (V): o problema da mentira
Edgard Leite está iniciando um ciclo sobre os problemas da obra de Hobsbawm. O primeiro vídeo já foi lançado e pode ser assistido no link Leituras de Hobsbawm (1): sobre bandidos.