Medidas adotadas pelo atual governo podem levar o país a uma crise fiscal, inviabilizando investimentos e aumentando o endividamento público. Apesar disso, propostas internas para reverter o quadro têm sido barradas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fará uma nova tentativa de convencer Lula a desarmar a “bomba-relógio” das contas públicas.
Nesta terça-feira (11), Haddad anunciou que apresentará alternativas para conter os gastos do governo, incluindo um freio nas despesas com saúde e educação. Essa iniciativa visa acalmar o mercado, que, preocupado com a situação fiscal, tem pressionado a alta do dólar e dos juros futuros.
“Por ocasião da discussão do Orçamento, nós vamos levar algumas propostas para o presidente, que pode aceitar ou não, dependendo da avaliação que ele fizer”, disse Haddad. O ministro não mencionou alterações nas regras da Previdência e benefícios assistenciais, que representam mais da metade dos gastos da União.
Há pouco mais de um mês, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, propôs uma discussão semelhante sobre controle de gastos, mas foi rapidamente repreendida por outros ministros e pelo partido do presidente.
Analistas desconfiam da sustentabilidade do novo arcabouço fiscal, instituído no ano passado em substituição ao teto de gastos. A nova regra permite um crescimento desproporcional das despesas, o que pode limitar investimentos e gastos discricionários.
Uma das iniciativas de Lula que contribuem para o aperto nas contas é a política de valorização real do salário mínimo, retomada pelo presidente logo no início de seu mandato.
Embora a valorização do salário mínimo ajude a aumentar o consumo, ela também eleva significativamente os gastos da União com a Previdência. Isso ocorre porque 60% das aposentadorias e pensões pagas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) são vinculadas ao salário mínimo.
Até 2022, a legislação determinava que o salário mínimo fosse ajustado pela inflação. A Lei 14.663/2023, no entanto, estabelece que o piso salarial será reajustado anualmente com base na inflação mais o crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores.
Segundo o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, essa nova política aumentará a despesa da Previdência em R$ 16,4 bilhões a mais do que se os benefícios fossem corrigidos apenas pela inflação. Além disso, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) custará R$ 4,5 bilhões a mais, de acordo com seus cálculos.
Obrigatoriedade de despesas mínimas com educação e saúde
Em outra frente, a extinção da regra do teto de gastos com a PEC da Transição, aprovada no final de 2022, restabeleceu a obrigatoriedade de gastos mínimos em saúde e educação, que haviam sido suspensos.
Esses pisos constitucionais vinculam-se à arrecadação federal: a educação deve receber 18% da receita líquida de impostos (RLI), e a saúde, 15% da receita corrente líquida (RCL). A retomada dessas exigências complicou a gestão do ministro Fernando Haddad, que buscou alternativas para contornar a regra em 2023.
Em um artigo publicado na “Folha de S.Paulo”, o economista Marcos Mendes define as vinculações de despesas como a causa principal do desequilíbrio fiscal crônico. “Uma das medidas essenciais para tirar o governo da rota do endividamento insustentável é a revisão das vinculações de despesas ao salário mínimo ou ao crescimento da receita”, escreveu Mendes.
Nessa frente, Haddad indicou que pretende convencer o presidente Lula a adotar medidas de controle das despesas. No entanto, o ministro não detalhou quais regras de correção pretende apresentar.
De acordo com o economista Marcos Mendes, apenas a despesa com saúde em 2024 será R$ 59,6 bilhões maior do que seria se o gasto mínimo de 2022, o último ano da regra anterior, tivesse sido ajustado apenas pela inflação. No caso da educação, os gastos já superavam o mínimo legal, o que torna difícil avaliar o impacto direto da vinculação nas despesas.
Arcabouço indexou emendas parlamentares
O cenário fiscal do Brasil enfrenta desafios adicionais devido ao novo arcabouço fiscal que também vincula o valor das emendas parlamentares de execução obrigatória à arrecadação. As emendas de bancada foram reajustadas para 1% da receita corrente líquida (RCL), enquanto as emendas individuais aumentaram de 1,2% para 2% da RCL.
Em 2024, o valor orçado para essas emendas será R$ 14,5 bilhões maior do que seria se a correção fosse feita pela inflação a partir do valor executado em 2022.
Outras vinculações herdadas de administrações anteriores também dificultam o manejo do Orçamento. Até 2020, por exemplo, o governo federal contribuía com 10% do montante aportado por estados e municípios no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
A Emenda Constitucional 108/2020 estabelece que a contribuição do governo federal para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) aumente gradualmente até 23%. Para 2024, essa contribuição será de 19%. Se o percentual anterior fosse mantido, a despesa federal com o Fundeb seria R$ 22,3 bilhões menor do que o valor orçado para este ano.
Outra despesa significativa vinculada à receita corrente líquida (RCL) é o aporte anual ao Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), criado em 2002. Se essa despesa fosse corrigida pela inflação em vez de pela variação da receita, a previsão de gasto para 2024 seria R$ 14,4 bilhões menor.
Considerando todas essas vinculações, a despesa total em 2024 poderia ser R$ 131,6 bilhões mais baixa. “Isso faria com que o déficit primário previsto pelo governo de R$ 9,3 bilhões se transformasse em um superávit de R$ 122,3 bilhões”, destaca o economista Marcos Mendes.
A cifra de R$ 131,6 bilhões, equivalente a uma variação positiva de 1,1% do Produto Interno Bruto (PIB), poderia transformar o déficit primário previsto de R$ 9,3 bilhões em um superávit de R$ 122,3 bilhões. No entanto, o governo projeta um resultado primário neutro para 2024. Diante desse cenário, a meta fiscal para 2025 foi rebaixada de um superávit de 0,5% do PIB para um novo resultado neutro. Agora, o governo projeta alcançar um superávit apenas em 2026, último ano do atual mandato de Lula.
Arcabouço fiscal em xeque
Se a situação atual persistir, o arcabouço fiscal instituído pelo governo Lula corre o risco de se tornar insustentável. A regra fiscal depende do aumento da receita para acomodar o crescimento das despesas, que podem aumentar, em termos reais, entre 0,6% e 2,5%. No entanto, com as vinculações, quando a arrecadação sobe, os custos indexados também aumentam, comprimindo o espaço para outras despesas.
De acordo com um levantamento do jornal “O Estado de S. Paulo”, baseado em projeções do Ministério do Planejamento e Orçamento e dados do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), se mantido o ritmo atual, apenas os pisos de saúde e educação representarão 112% das despesas discricionárias até 2028.
O eventual descumprimento das metas de resultado primário pode contribuir para elevar a dívida pública em relação ao PIB, não só devido ao déficit fiscal, mas também pela limitação do crescimento econômico causada pela falta de investimentos.
A credibilidade cada vez menor do arcabouço fiscal está fazendo com que o mercado exija juros mais altos nos títulos públicos, o que cria um ciclo vicioso que dificulta ainda mais o dinamismo econômico devido à menor circulação de dinheiro e ao baixo investimento em capital produtivo.
O mercado já está refletindo essa situação. A projeção mediana dos analistas consultados pelo Banco Central para a taxa Selic no fim do ano subiu de 9,63% para 10,25% nas últimas quatro semanas.
“Não está claro totalmente como a economia vai reagir a uma política fiscal expansionista e um Banco Central contracionista”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. Para ele, os riscos de impacto negativo aumentam para 2025 devido à política monetária.
“Se o governo não encontrar um rumo diferente do atual, corre o risco de entregar taxas de crescimento cadentes em cada um dos anos de seu governo”, acrescenta.
Propostas de ajuste das contas públicas foram rechaçadas
No mês passado, a ministra Simone Tebet sugeriu a desvinculação do salário mínimo do piso de aposentadorias, BPC, seguro-desemprego e abono salarial.
Ela também mencionou a possibilidade de incorporar o Fundeb ao limite mínimo de gastos em educação, o que poderia resultar em economias ao reduzir outras despesas na área.
Apesar de Tebet não ter dado declarações públicas recentes sobre o tema, Lula aparentemente não apoiou a proposta, a julgar por manifestações de aliados. A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, criticou a ideia nas redes sociais.
“Desvincular a Previdência do salário mínimo e incluir o Fundeb na conta do piso da Educação são ideias muito ruins, que contrariam o programa de governo eleito em 2022”, escreveu a deputada no X. Ela acrescentou que tais medidas prejudicariam diretamente milhões de aposentados e estudantes de escolas públicas, grupos que precisam da proteção estatal garantida pela Constituição. “É no mínimo preocupante que sejam defendidas pela ministra Simone Tebet. Responsabilidade fiscal não tem nada a ver com injustiça social”, concluiu Hoffmann.
A proposta de desvincular o salário mínimo de benefícios como aposentadorias, BPC, seguro-desemprego e abono salarial também recebeu críticas de outros membros do governo. “Sou totalmente contra essa proposta, que acho absurda”, afirmou o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, ao “Estadão”. “Se é para apresentar uma proposta dessas, vamos logo acabar com a política de valorização permanente do salário mínimo.”
O ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), também se opôs à sugestão de Tebet. “Isso é tirar renda da parte mais pobre da população”, disse Lupi ao mesmo jornal. “Lutarei contra.”
Em uma entrevista ao “O Estado de S.Paulo” pouco depois, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tentou encerrar o debate afirmando desconhecer a proposta e dizendo que não havia espaço para discuti-la. Curiosamente, dias antes, Haddad havia compartilhado um artigo do economista Bráulio Borges, da Fundação Getulio Vargas (FGV), que recomendava, entre outras medidas, a desvinculação do salário mínimo e dos benefícios.
No início de abril, a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, criticou um relatório do Tesouro Nacional que apontava uma economia de R$ 131 bilhões até 2033 com a mudança na regra de correção dos pisos constitucionais para saúde e educação.
A necessidade de revisar os gastos com essas áreas já havia sido defendida pelo secretário do Tesouro, Rogério Ceron, no início de 2023. “Entendemos que há critérios que podem ser melhores que a mera indexação [em relação às receitas]”, afirmou Ceron na época.
“Recuar nesses avanços, como vimos ontem [7 de abril] na imprensa com base em ‘estudo’ da área econômica, não seria uma opção válida nem justa para financiar outras áreas de governo, todas elas importantes”, escreveu Gleisi no X.
No dia 14 de maio, Gleisi Hoffmann voltou a criticar uma possível alteração na regra atual. “Volta a circular na mídia a ideia totalmente equivocada de rever os pisos constitucionais da Saúde e Educação. Querem tirar de dois setores em que o país vem avançando, corrigindo uma dívida histórica com a população, com o falso pretexto de que seria necessário para financiar outras ações”, postou.
Ela ainda sugeriu outra solução: “Que tal cortar na conta dos juros exorbitantes que o governo tem de pagar? Felizmente, o ministro Haddad já disse que os ‘estudos’ sobre revisão dos pisos ‘não prosperaram’ e enfrentariam resistências também no Congresso”, concluiu.
Vários analistas de contas públicas são favoráveis a uma revisão na regra dos pisos de gastos. Para Alessandra Ribeiro, da Tendências Consultoria, a medida poderia ajudar o governo a equilibrar o resultado primário em conjunto com as iniciativas que buscam elevar a arrecadação.
“O grande problema é que não temos mais gordura para queimar nas despesas discricionárias e cortar as obrigatórias parece realmente difícil”, disse Ribeiro. “Mas você pode reduzir o ritmo de alta.”
Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, destaca que a regra dos pisos deve elevar os gastos devido à busca da Fazenda por mais fontes de arrecadação. “Se a receita como um todo crescer mais do que 2,5%, que é o limite imposto pela nova regra fiscal, essas despesas vão pressionar as demais, reduzindo o espaço para gastos discricionários dentro do novo teto”, explica.
Lula demonstra não estar preocupado
Ao comentar a política fiscal de seu governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em mais de uma ocasião, demonstrou não estar muito preocupado em cumprir as metas estabelecidas por sua própria equipe econômica.
Em outubro do ano passado, ele afirmou que “dificilmente” se alcançaria o resultado primário zero em 2024. “Até porque eu não quero fazer cortes em investimentos”, justificou. “Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo um corte de bilhões nas obras.”
Em maio, o presidente disse que fica “irritado” com o debate público sobre a meta fiscal, indicando que dificilmente daria aval a medidas de austeridade que afetem políticas sociais.
“O que eu não posso é ficar com o sistema financeiro todo santo dia só olhando o déficit fiscal e não olhar o déficit social. Olha as pessoas que estão desempregadas, que estão dormindo na rua e que estão passando fome. Pare de olhar só para o seu cofre, para a sua conta bancária. Olhe para o povo”, declarou.