Primeiramente, é preciso distinguir as duas teorias da ação em vigor em nosso ordenamento jurídico, cada juiz aplicando-as de acordo com seu entendimento. A lei processual brasileira admite a teoria eclética, que entende que há independência entre o exercício do direito de ação e a procedência das alegações iniciais, devendo para isso perscrutar-se todo o rito processual mediante instrução exaurida com a asseguração do contraditório e da ampla defesa.
Há outra teoria, a da asserção, que infunde em um momento único a aferição entre as alegações iniciais trazidas pela parte e a razoável verossimilhança de que sejam procedentes, mediante análise do acervo probatório trazido ab ovo com a petição inicial. O juiz, então, realizada uma atividade intelectiva de cognição sumária e, se constatar que as alegações iniciais de fato de probabilidade de serem verossímeis, determina a citação do réu.
O direito de ação, assim, é um mecanismo constitucionalmente assegurado e que deve, por imperativo das próprias regras da democracia, permanecer hígido para o pleno exercício do direito de ação.
Agora, vejamos o que estabelece o art. 1º, da Lei Kim:
“Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquerito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a pratica de ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral:
(…)
§3º. Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente, ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga, propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.“
O que de antemão nos salta aos olhos, é que a lei estaria exigindo do indivíduo o que nem a Constituição Federal exige para o exercício do direito de ação: que o indivíduo tenha pleno conhecimento de todos os fatos e provas anteriormente ao ajuizamento de qualquer medida judicial ou administrativa.
E isto porque nem a Constituição Federal faz a presunção que a Lei Kim lança, de que o indivíduo teria condições de saber da inocência ou da inverdade das alegações que tece em juízo – constatando-se o oximoro jurídico que se instauraria no país, correndo o risco de se presumir que quem busca o judiciário já estaria mentindo de antemão. Por outro modo, tal medida concederia um exorbitante poder ao juiz, que poderia determinar a abertura de ação penal caso sobreviesse improcedência, a fim de averiguar se o autor teria deduzido sua pretensão de modo a escamotear a verdade que já te antemão conhecia, e que exigirá um juízo extremamente subjetivo por parte do Juiz, inevitavelmente incidindo em arbitrariedade interpretativa.
Como se avaliar a má-fé e intenção mendaz de quem ajuíza ação lastreado em suposta causa de pedir falseada, sem que o Juiz exerça uma subjetividade que nem a própria Constituição Federal confere ao Poder Judiciário?
Questiono mais: como o Ministério Público Federal chegaria a todo o novelo criminoso que desaguou na operação Lavajato se não tivesse iniciado a ação penal apenas com os indícios iniciais de que dispunha?
Ora, muitas vezes a parte que se sente lesada, de fato, não dispõe de todas as informações, e pode ser que no curso da ação judicial, do inquérito ou do procedimento administrativo sobrevenha que aquele contra quem exerceu o direito de ação não cometeu os atos que a si tinham sido imputados, e é por isso que nosso ordenamento elegeu como símbolo máximo da democratização da justiça o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Há, contudo, um problema ainda mais grave no referido dispositivo, que é o §3º. Estar-se-ia, de modo flagrantemente autoritário, e a se instaurar a censura prévia no país, criminalizando a divulgação de ações em curso contra políticos e demais autoridades.
Com efeito. Imagine-se, pois, o seguinte cenário: o “indivíduo A” resolve ajuizar uma ação ou representar por improbidade administrativa o “indivíduo B”. Como o “indivíduo A” apresentou elementos iniciais que suportavam a verossimilhança de suas alegações, o juiz determina o prosseguimento da ação e a citação do “indivíduo B”; por conseguinte, o MP acolhe as alegações iniciais e instaura um inquerito civil que culmina com o ajuizamento de uma ação civil pública.
Ao final, concluí-se que o indivíduo B era inocente das acusações, e o Poder Judiciário julga improcedente a ação.
Contudo, entrementes, a sociedade civil em geral divulga essas informações, não para condenar ou tecer juízos de valor prévios, mas para dar conhecimento que contra o indivíduo B existe uma ação em que lhe são imputadas acusações, por exemplo, de improbidade administrativa, e que são de interesse público.
Ora, por regra, as ações judiciais são públicas e a menos que o juízo decrete o sigilo dessas ações judiciais, o que seria prejudicial à atividade de imprensa, um imenso contingente de pessoas correria o risco de ser condenado de 2 a 8 anos por simplesmente divulgar que há, em curso, uma ação contra o indivíduo B.
Se alguém que se diz liberal concorda com isso, não tem direito nenhum de criticar Bolsonaro por tecer loas ao período de exceção democrática em nosso país. Nem os nossos militares foram tão autoritários.