Imagem: Nelson Jr. | SCO | STF
Antes de falar sobre democracia, precisamos defini-la, já que se trata, talvez, da unanimidade menos inteligível existente.
Falar mal da democracia virou, praticamente, um pecado secular. Num primeiro momento, podemos definir democracia como o governo do povo. Soa bem. Definição suficientemente vaga para gerar apoio generalizado dos incautos, explorados pelos demagogos. Mas, deixemos o cinismo de lado. Vamos detalhar o conceito na sua manifestação mais benigna: democracia é um sistema de governo onde o poder é exercido pelo povo através de seus representantes eleitos livremente, que votam as regras pelas quais tal povo opera, onde há garantia de certos direitos humanos básicos, como liberdade de expressão, de culto, associação e propriedade privada, onde todos são tratados de forma igual diante da lei e há a liberdade de prosperar por livre iniciativa. O Estado de Direito decorrente desse arranjo, nada mais é do que a imposição das leis, de forma justa e igualitária.
Aristóteles tem uma definição mais negativa de democracia. Para ele, a democracia representa uma espécie de ditadura da maioria. Em outras palavras, quando o povo detém o poder de fato, ele pode utilizá-lo para saciar seus piores instintos. Pense em assalto ao direito de propriedade em nome da “igualdade”, além do afrouxamento de regras morais em nome da “liberdade”, da condenação daqueles que produzem riqueza e a idolatria dos malandros. Por outro lado, ele chama um regime onde a maioria manda para o bem de todos, buscando um nível moral mais elevado, de politeia, conceito traduzido por Cícero como res publica, “bem público”, a nossa República. Fica claro que muita gente usa o termo democracia, quando na verdade está se referindo a um regime republicano.
De qualquer forma, feita essa introdução etimológica, podemos usar o termo “democracia” na sua manifestação republicana, por assim dizer.
Podemos afirmar, sem dúvida alguma, que não temos um regime democrático no Brasil. Em primeiro lugar, não há de se falar em eleições livres num sistema de tal forma complexo que poucos representantes são eleitos pelos votos dos representados, mas sim por um associação entre votos no partido e no candidato; dependo do local que você habita, o seu voto vale mais ou menos em representação. Além disso, os candidatos, de uma forma geral, não apresentam suas ideologias, para que o eleitor possa votar em quem de fato represente as suas ideias. Os partidos apresentam uma verdadeira salada de frutas ideológica, onde o único objetivo em comum é alcançar o poder e dele se locupletar. Há um agravante: o próprio sistema de votação, eletrônico, é passível de fraudes. Quando os representantes do povo decidiram, de maneira correta, melhorar esse sistema, criando o recibo de voto impresso, a Justiça resolveu impedir tal mudança.
Mais, as dezenas de partidos existentes recebem verbas públicas para fazer suas campanhas, estabelecendo uma esmagadora vantagem sobre aqueles que estão de fora do usual jogo de cartas marcadas, já que as doações pessoas são limitadas por lei. Se um cacique partidário não gostar de um candidato, ele não conseguirá nem mesmo concorrer, pois não há candidatura avulsa.
Depois de ter que escolher entre nomes pré-selecionados pelos partidos de sempre, o eleitor observa seus representantes eleitos, seja a nível municipal, estadual ou federal, se debruçarem ao trabalho de tirar o máximo benefício próprio do cargo, de forma legal e ilegal. Ou seja, nesse sentido, temos a definição aristotélica de Oligarquia, o governo de poucos em benefício deles próprios.
Na busca de vantagens, manutenção do poder ou dinheiro mesmo, os representantes não estão sozinhos. Eles têm outros setores da elite ao seu lado, prontos a se beneficiarem de crédito, contratos e verbas de todo o tipo para repartirem com os seus sócios no poder, como bem demonstrou a Lava Jato, usando como base o aumento sistemático de tributos. Regras são criadas para beneficiar quem participa do esquema, e impedir que eles sejam ameaçados por novos entrantes no mercado. Segundo Palocci, foram centenas de milhões de reais em propinas para que o governo aprovasse uma série de medidas provisórias, prontamente aprovadas pelos parlamentares, cada um deles regiamente pago pelo esquema. Tal arranjo pode ser chamado de “capitalismo de compadrio”.
Obviamente, todo esse esquema só pode funcionar se o povo estiver minimamente contente com a sua própria situação, mesmo sendo enganado pela elite, já que temos a cobrança de impostos altíssimos com a entrega de péssimos serviços em retorno. Mas, na democracia ilusória, receber um Bolsa Família ou um financiamento Minha Casa, Minha Vida, parece ser um grande negócio.
Tais ilusões são mais fáceis de serem mantidos em momentos de ciclos econômicos positivos, como aquele que Lula atravessou no início da década passada. Em tempos de bonança, você pode se endividar e comprar a felicidade geral da nação, com bilhões para os sócios no poder, e migalhas para as massas.
Mas, como diria Thatcher, o socialismo acaba quando acaba o dinheiro dos outros. Foi exatamente quando a bonança acabou que a conta chegou, favorecendo as condições para que as células ainda saudáveis da estrutura política do país pudessem expor toda a podridão do sistema, corrompido até a medula. A crise econômica resultante da ilusão econômica produzida por Lula foi tão intensa que tivemos uma década perdida, enquanto o mundo inteiro cresceu. A marolinha virou um tsunami que engolfou toda a sociedade brasileira.
Justamente por estar quase completamente corrompido é que o sistema se manteve de pé. Várias figuras importantes caíram, como o próprio Lula (líder político da quadrilha), e Odebrecht (líder empresarial da quadrilha), além de vários outros. Mas um número ainda maior de bandidos manteve a sua posição na estrutura do poder. O próprio projeto gramsciano de poder, colocado em prática pela esquerda brasileira, garante o controle da máquina pública mesmo com uma derrota eleitoral.
Toda a indignação popular foi canalizada na última eleição presidencial para um candidato que não participou, ao longo da sua vida, dos esquemas expostos pela Lava Jato. Além disso, foi o primeiro candidato em muito tempo a assumir posturas conservadoras, representando a maioria do povo brasileiro. Porém, sem respaldo num partido estruturado, tampouco contando com uma militância organizada, sua posição na estrutura de poder é tênue, já que é visto como ameaça por quase todos em Brasília, que não esperaram nem a sua cadeira esquentar para tentar derrubá-lo, como confidenciou o presidente do STF.
Sem partir para uma ruptura mais profunda num sistema completamente corrompido, o novo governo passou a atuar dentro das limitações impostas pelo próprio sistema republicano de divisão de poderes, pensado por Montesquieu para evitar o totalitarismo, não para manter de pé um regime corrupto, como tem acontecido no Brasil. Numa subversão diabólica dessa ideia, observamos o Senado deixando de fiscalizar o Supremo, que por sua vez, arquiva todos os processos de corrupção de senadores que chegam até a corte. Também observamos o Legislativo chantageando o Executivo para aprovar reformas urgentes ao país. Talvez tenha sido isso que José Dirceu tenha sugerido, quando disse, durante as eleições: “vamos tomar o poder, o que é muito diferente de ganhar uma eleição”.
Como diria Thomas Jefferson, não devemos nos revoltar com facilidade, querendo derrubar um sistema estabelecido por motivos fúteis, mas chega num ponto que não há outra forma de viver de forma digna e de haver a possibilidade de dias melhores, sem uma mudança mais profunda.
Ficou claro nas últimas semanas o colapso completo da democracia representativa brasileira e do Estado Direito. Num esforço coordenado, a imprensa se utilizou de vazamento de conversas privadas de membros da Lava Jato para questionar condenações dos corruptos pegos no maior esquema de corrupção já desbaratado na história humana moderna. Utilizando a falsa narrativa de “abuso” de autoridade na Lava Jato, parlamentares votaram uma lei para dificultar o trabalho de juízes, promotores e procuradores na investigação de crimes, não apenas os cometidos por políticos, mas por qualquer criminoso. O Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o guardião da Lei e da Ordem, passou a tomar decisões em série para anular condenações e dificultar as investigações em aberto. Ou seja, temos os supostos representantes do povo votando uma lei para se proteger da justiça, que por sua vez, liberta da cadeia os poucos corruptos que foram presos! Como alguém pode ter coragem de chamar isso de democracia?
Em outras palavras, ao querer acreditar na fábula de um sistema corrompido se auto purificar, fomos agraciados com uma situação ainda pior do que anterior: não só temos um sistema podre, mas agora temos novas leis e procedimentos que impedem qualquer limpeza.
O único ponto positivo de tal desdobramento é que a farsa acabou. Agora, não é mais possível usar o argumento da ignorância para justificar o silêncio. O Congresso é formado por uma maioria de corruptos. O STF opera para proteger tais corruptos e outros integrantes do esquema. A imprensa, corrupta, trabalha para justificar tais decisões, ao invés de denunciá-las.
Ou se parte para exigir a refundação do Brasil, com a retirada da vida pública, para sempre, dos bandidos que nela operam, ou há dois caminhos possíveis: a melhora da economia gera a volta do teatro, numa espécie de fantasia voluntária, ou teremos um estado crescente de revolta, que exigirá do sistema corrupto um nível cada vez maior de repressão, como aconteceu na Venezuela. O desejo repressivo já está dado, como o inquérito ilegal e imoral, aberto pelo presidente do STF, com o manifesto objetivo de silenciar críticos e até mesmo de censurar a imprensa que se nega a participar da farsa em marcha. Até mesmo medidas positivas, como a Reforma da Previdência, só avançam pela expectativa de melhora da economia e diminuição de pressão sobre os políticos. Mesmo assim, aos trancos e barrancos.
No final, tudo dependerá da postura dos militares. Se eles toparão participar desse teatro, até o ponto de ter que reprimir a população em algum momento, partindo para uma ditadura escancarada, ou resolverão participar de um processo de refundação do país. Há muitos fatores em jogo, que não dependem apenas da situação econômica interna, mas também da situação internacional; por enquanto vejo como cenário mais provável uma acomodação no curto prazo, escondendo, por mais algum tempo, como numa panela de pressão, o sentimento de profunda revolta de parte significativa da população, que pode até mesmo ser manipulado, quando explodir, para consolidar a Cleptocracia vigente, talvez a melhor definição do sistema político brasileiro.