É preciso deixar de lado a visão fantasiosa de que o governo federal é uníssono, que estão todos empenhados numa mesma causa e unidos em prol do mesmo objetivo.
Por questão de justiça, não coloco em dúvida a integridade moral e pessoal dos que compõem o Executivo. No entanto, há de se reconhecer a existência de divisões.
Compreender as nuances em torno dessa problemática em vez de fingir que elas não existem, como se a omissão funcionasse a toque de mágica e imediatamente neutralizasse todas as situações existentes, nunca será uma opção, pelo menos não ao autor desta análise.
Embates são normais e antagonismos fazem parte do cotidiano político. A sociologia e a psicologia, que estudam o comportamento humano, atestam que a multiplicidade de indivíduos num mesmo ambiente comum é o motivo.
Os confrontos internos mais corriqueiros, que acontecem desde o início da gestão Bolsonaro, sempre estiveram concentrados em torno do remanejamento de verbas federais e opiniões distintas sobre políticas públicas de enfrentamento à recessão econômica.
Com a ascensão da pandemia do vírus chinês, tais discussões se tornaram ainda mais acaloradas e chegaram à publicização.
Na noite desta última quinta-feira (22), o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi ao Twitter para direcionar um ‘recado’ ao general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo da Presidência.
Na publicação, o titular do Meio Ambiente respondeu ao texto publicado pela colunista Bela Megale, do O Globo, que traz o título “Salles estica a corda com a ala militar do governo e testa blindagem com Bolsonaro”.
Na legenda, Salles mencionou a conta oficial de Ramos na rede social. “@ MinLuizRamos [Luiz Eduardo Ramos] não estiquei a corda com ninguém. Tenho enorme respeito e apreço pela instituição militar. Atuo da forma que entendo correto. Chega dessa postura de #mariafofoca”, escreveu.
A maioria dos usuários que comentaram na postagem de Salles manifestaram apoio ao ministro e entenderam o direcionamento do ‘recado’. Alguns internautas, no entanto, questionaram se o termo ‘Maria Fofoca’ não teria sido lançado contra a jornalista que assina a matéria.
O Conexão Política fez contato com uma fonte do governo federal e confirmou que o ministro do Meio Ambiente não só direcionou a crítica a Ramos, como tem convicção e segurança que a especulação teria sido passada ao jornal pelo próprio general, que possui gabinete no Palácio do Planalto.
A quem interessa?
Não é a primeira vez que existem evidências de que alguém próximo ao presidente da República estaria vazando à imprensa informações sobre intrigas palacianas.
Também não é a primeira oportunidade que Salles e Ramos escancaram a desarmonia entre os dois.
Em junho, após pressão do ‘centrão’ pela nomeação do empresário Glauco José Côrte Filho para o comando da superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Santa Catarina, o Ministério do Meio Ambiente foi questionado sobre os critérios que culminaram na escolha do nome. Em resposta, a pasta pediu que a pergunta fosse direcionada à Secretaria de Governo. “Sobre seus questionamentos, procure o Ramos, por favor. Essa foi uma indicação do ministro Ramos, da Secretaria de Governo”, informou a comunicação do MMA.
Em agosto, mais um episódio. Na ocasião, o Estadão publicou matéria em que afirma ter ouvido uma fonte interna do núcleo duro do governo. De acordo com a tal fonte, Salles teria protagonizado uma “atitude kamikaze” e seu futuro à frente do Ministério estaria ameaçado após ele enfrentar alguns dos ministros considerados “mais fortes”. A previsão da tal fonte não se concretizou e o titular do Meio Ambiente segue tendo respaldo de Jair Bolsonaro, mas a principal finalidade – a ‘fritura’ pública – foi concretizada.
A controvérsia, porém, não está restrita somente a Salles e Ramos. Para que as ideias de um único indivíduo ganhem força, é necessário união, ou seja, é preciso que mais pessoas deem respaldo e suporte.
Assim, costumo separar a disputa interna em dois grupos: os militares e desenvolvimentistas, que são os generais com cargo no Executivo, apontados como autores das articulações com o ‘centrão’, representados principalmente nas figuras de Walter Braga Netto, da Casa Civil, o próprio Luiz Ramos, da Secretaria de Governo, e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. Em comum, eles defendem a indução da atividade econômica pelo Estado e aumento dos investimentos públicos, principalmente em obras.
Noutra ponta estão os civis e fiscalistas, sendo a maior parte deles alinhada ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Em comum, defendem a preservação do teto de gastos, as reformas estruturantes e o ajuste fiscal, conforme preconiza o ideal liberal. Somado a Guedes, o grupo é representado principalmente pelo próprio Salles, do Meio Ambiente, Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central [cargo que possui status de ministro], além de Filipe Martins, chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais da Presidência.
Na repercutida reunião ministerial de 22 de abril, divulgada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o racha não só já existia como foi mencionado pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub. Durante explanação, ele afirmou que ‘muita gente’ dentro do governo possui ‘agenda própria’. Se a fala foi direcionada a algum ministro em específico ou a determinado grupo, não sabemos. No entanto, há de se concordar que a declaração corrobora com o raciocínio trazido nesta análise.
Mas nem só de bastidores vive o analista. Recentemente, no início de outubro, as discordâncias foram trazidas a público. Durante conversa com jornalistas, na portaria do Ministério da Economia, o ministro Paulo Guedes afirmou não acreditar que Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, tenha falado mal dele. No entanto, se falou, Guedes disse que Marinho é “despreparado”, “desleal” e “fura-teto”. O economista se referia à matéria publicada pelo ‘O Estado de S. Paulo’, segundo a qual, Marinho teria afirmado, durante encontro com investidores, que o ministro da Economia foi o autor da proposta – rechaçada publicamente pelo próprio Guedes – de usar recursos de precatórios para financiar o Renda Cidadã. Posteriormente, Marinho emitiu nota dizendo que não houve ‘desqualificações ou adjetivações’ durante a reunião e que a informação foi noticiada ‘de maneira destorcida’.
A ascensão do então Renda Brasil, que depois virou Renda Cidadã, é mais um exemplo materializado. A ala desenvolvimentista quis colocar o programa social fora do limite de gastos. Na prática, isso representaria aumento nas despesas acima da inflação, o que é rechaçado pelos fiscalistas. Por sorte, a iniciativa não vingou. O relator da medida no Senado Federal, senador Márcio Bittar (MDB-AC), aliado de Guedes, garantiu que a solução sobre o financiamento do programa de transferência de renda preservará o teto determinado na Constituição.
Mas por que ultrapassar o teto foi uma hipótese debatida? O motivo pode ser definido em uma única palavra: popularidade. Entre outras ações que levariam ao estouro do limite orçamentário legislativo está o investimento em obras públicas e programas sociais, conforme citado acima. A presença de Bolsonaro na inauguração de tais empreendimentos resultaria em aprovação popular, tese que foi certificada em pesquisas com o impacto positivo do auxílio emergencial. Se estimulada, a medida colocaria o presidente em vantagem na disputa eleitoral de 2022, mesmo faltando dois anos para o pleito eleitoral. E é claro que o efeito não seria exclusivo ao chefe do Executivo. O governo federal, de forma geral, seria beneficiado, inclusive Rogério Marinho, que teria sua base eleitoral no Rio Grande do Norte alavancada. O resultado pessoal até poderia ser bom, mas seria péssimo para o Brasil, na medida em que resultaria em fiasco econômico semelhante ao protagonizado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Esse embate foi exposto em momento posterior pelo ministro Paulo Guedes. Em um duro recado ao ministro Rogerio Marinho, no início de outubro, o economista afirmou que criar gastos permanentes que resultem na violação do limite com a intenção de “fazer política” e “ganhar eleição” é um ato “irresponsável”. “Uma coisa é você furar o teto porque você está salvando vidas em ano de pandemia, e isso ninguém pode ter dúvidas. Agora, você furar teto para fazer política, para ganhar eleição, para garantir, isso é irresponsável com as futuras gerações. Isso é mergulhar o Brasil no passado triste de inflação alta”, declarou na ocasião.
Dito isso, volto ao questionamento que dá título ao presente texto. O interesse na ‘fritura’ de Ricardo Salles não é deste ou daquele indivíduo. É algo bem maior. A queda do titular do Meio Ambiente, conforme demonstrado acima, é empenhada por pessoas que, apesar de fazerem parte do governo federal, não possuem compromisso com as pautas e bandeiras que sempre foram consenso durante a campanha eleitoral de 2018.
*Texto atualizado às 16h21 de 23/10/2020 para acréscimo de informações.