É preciso deixar de lado a visão fantasiosa de que o governo federal é uníssono, que estão todos empenhados numa mesma causa e unidos em prol do mesmo objetivo.
Por questão de justiça, não coloco em dúvida a integridade moral e pessoal dos que compõem o Executivo. No entanto, há de se reconhecer a existência de divisões.
Compreender as nuances em torno dessa problemática em vez de fingir que elas não existem, como se a omissão funcionasse a toque de mágica e imediatamente neutralizasse todas as situações existentes, nunca será uma opção, pelo menos não ao autor desta análise.
Embates são normais e antagonismos fazem parte do cotidiano político. A sociologia e a psicologia, que estudam o comportamento humano, atestam que a multiplicidade de indivíduos num mesmo ambiente comum é o motivo.
Os confrontos internos mais corriqueiros, que acontecem desde o início da gestão Bolsonaro, sempre estiveram concentrados em torno do remanejamento de verbas federais e opiniões distintas sobre políticas públicas de enfrentamento à recessão econômica.
Com a ascensão da pandemia do vírus chinês, tais discussões se tornaram ainda mais acaloradas e chegaram à publicização.
Na noite desta última quinta-feira (22), o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi ao Twitter para direcionar um ‘recado’ ao general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo da Presidência.
Na publicação, o titular do Meio Ambiente respondeu ao texto publicado pela colunista Bela Megale, do O Globo, que traz o título “Salles estica a corda com a ala militar do governo e testa blindagem com Bolsonaro”.
Na legenda, Salles mencionou a conta oficial de Ramos na rede social. “@ MinLuizRamos [Luiz Eduardo Ramos] não estiquei a corda com ninguém. Tenho enorme respeito e apreço pela instituição militar. Atuo da forma que entendo correto. Chega dessa postura de #mariafofoca”, escreveu.
@MinLuizRamos não estiquei a corda com ninguém. Tenho enorme respeito e apreço pela instituição militar. Atuo da forma que entendo correto. Chega dessa postura de #mariafofoca pic.twitter.com/FAjmpTFn9L
— Ricardo Salles (@rsallesmma) October 23, 2020
A maioria dos usuários que comentaram na postagem de Salles manifestaram apoio ao ministro e entenderam o direcionamento do ‘recado’. Alguns internautas, no entanto, questionaram se o termo ‘Maria Fofoca’ não teria sido lançado contra a jornalista que assina a matéria.
O Conexão Política fez contato com uma fonte do governo federal e confirmou que o ministro do Meio Ambiente não só direcionou a crítica a Ramos, como tem convicção e segurança que a especulação teria sido passada ao jornal pelo próprio general, que possui gabinete no Palácio do Planalto.
A quem interessa?
Não é a primeira vez que existem evidências de que alguém próximo ao presidente da República estaria vazando à imprensa informações sobre intrigas palacianas.
Também não é a primeira oportunidade que Salles e Ramos escancaram a desarmonia entre os dois.
Em junho, após pressão do ‘centrão’ pela nomeação do empresário Glauco José Côrte Filho para o comando da superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Santa Catarina, o Ministério do Meio Ambiente foi questionado sobre os critérios que culminaram na escolha do nome. Em resposta, a pasta pediu que a pergunta fosse direcionada à Secretaria de Governo. “Sobre seus questionamentos, procure o Ramos, por favor. Essa foi uma indicação do ministro Ramos, da Secretaria de Governo”, informou a comunicação do MMA.
Em agosto, mais um episódio. Na ocasião, o Estadão publicou matéria em que afirma ter ouvido uma fonte interna do núcleo duro do governo. De acordo com a tal fonte, Salles teria protagonizado uma “atitude kamikaze” e seu futuro à frente do Ministério estaria ameaçado após ele enfrentar alguns dos ministros considerados “mais fortes”. A previsão da tal fonte não se concretizou e o titular do Meio Ambiente segue tendo respaldo de Jair Bolsonaro, mas a principal finalidade – a ‘fritura’ pública – foi concretizada.
A controvérsia, porém, não está restrita somente a Salles e Ramos. Para que as ideias de um único indivíduo ganhem força, é necessário união, ou seja, é preciso que mais pessoas deem respaldo e suporte.
Assim, costumo separar a disputa interna em dois grupos: os militares e desenvolvimentistas, que são os generais com cargo no Executivo, apontados como autores das articulações com o ‘centrão’, representados principalmente nas figuras de Walter Braga Netto, da Casa Civil, o próprio Luiz Ramos, da Secretaria de Governo, e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. Em comum, eles defendem a indução da atividade econômica pelo Estado e aumento dos investimentos públicos, principalmente em obras.
Ministro Ramos competente na articulação política. Ainda ontem em solenidade no palácio do planalto, tratamos do tema da articulação com o presidente Bolsonaro. Entrosado com os líderes do governo e dos partidos na câmara e no senado , Ramos está assegurando governabilidade pic.twitter.com/w1noDnDBM0
— Ricardo Barros (@RicardoBarrosPP) October 23, 2020
Noutra ponta estão os civis e fiscalistas, sendo a maior parte deles alinhada ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Em comum, defendem a preservação do teto de gastos, as reformas estruturantes e o ajuste fiscal, conforme preconiza o ideal liberal. Somado a Guedes, o grupo é representado principalmente pelo próprio Salles, do Meio Ambiente, Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central [cargo que possui status de ministro], além de Filipe Martins, chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais da Presidência.
Quero agradecer ao nosso Min. Paulo Guedes que acaba de me informar que deve liberar, ainda hoje, os 60 milhões necessários à continuidade das ações do IBAMA no combate às queimadas e ao desmatamento ilegal. Tks PG ! pic.twitter.com/wG4Ora7amK
— Ricardo Salles (@rsallesmma) October 23, 2020
Na repercutida reunião ministerial de 22 de abril, divulgada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o racha não só já existia como foi mencionado pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub. Durante explanação, ele afirmou que ‘muita gente’ dentro do governo possui ‘agenda própria’. Se a fala foi direcionada a algum ministro em específico ou a determinado grupo, não sabemos. No entanto, há de se concordar que a declaração corrobora com o raciocínio trazido nesta análise.
Mas nem só de bastidores vive o analista. Recentemente, no início de outubro, as discordâncias foram trazidas a público. Durante conversa com jornalistas, na portaria do Ministério da Economia, o ministro Paulo Guedes afirmou não acreditar que Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, tenha falado mal dele. No entanto, se falou, Guedes disse que Marinho é “despreparado”, “desleal” e “fura-teto”. O economista se referia à matéria publicada pelo ‘O Estado de S. Paulo’, segundo a qual, Marinho teria afirmado, durante encontro com investidores, que o ministro da Economia foi o autor da proposta – rechaçada publicamente pelo próprio Guedes – de usar recursos de precatórios para financiar o Renda Cidadã. Posteriormente, Marinho emitiu nota dizendo que não houve ‘desqualificações ou adjetivações’ durante a reunião e que a informação foi noticiada ‘de maneira destorcida’.
A ascensão do então Renda Brasil, que depois virou Renda Cidadã, é mais um exemplo materializado. A ala desenvolvimentista quis colocar o programa social fora do limite de gastos. Na prática, isso representaria aumento nas despesas acima da inflação, o que é rechaçado pelos fiscalistas. Por sorte, a iniciativa não vingou. O relator da medida no Senado Federal, senador Márcio Bittar (MDB-AC), aliado de Guedes, garantiu que a solução sobre o financiamento do programa de transferência de renda preservará o teto determinado na Constituição.
Mas por que ultrapassar o teto foi uma hipótese debatida? O motivo pode ser definido em uma única palavra: popularidade. Entre outras ações que levariam ao estouro do limite orçamentário legislativo está o investimento em obras públicas e programas sociais, conforme citado acima. A presença de Bolsonaro na inauguração de tais empreendimentos resultaria em aprovação popular, tese que foi certificada em pesquisas com o impacto positivo do auxílio emergencial. Se estimulada, a medida colocaria o presidente em vantagem na disputa eleitoral de 2022, mesmo faltando dois anos para o pleito eleitoral. E é claro que o efeito não seria exclusivo ao chefe do Executivo. O governo federal, de forma geral, seria beneficiado, inclusive Rogério Marinho, que teria sua base eleitoral no Rio Grande do Norte alavancada. O resultado pessoal até poderia ser bom, mas seria péssimo para o Brasil, na medida em que resultaria em fiasco econômico semelhante ao protagonizado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Esse embate foi exposto em momento posterior pelo ministro Paulo Guedes. Em um duro recado ao ministro Rogerio Marinho, no início de outubro, o economista afirmou que criar gastos permanentes que resultem na violação do limite com a intenção de “fazer política” e “ganhar eleição” é um ato “irresponsável”. “Uma coisa é você furar o teto porque você está salvando vidas em ano de pandemia, e isso ninguém pode ter dúvidas. Agora, você furar teto para fazer política, para ganhar eleição, para garantir, isso é irresponsável com as futuras gerações. Isso é mergulhar o Brasil no passado triste de inflação alta”, declarou na ocasião.
Dito isso, volto ao questionamento que dá título ao presente texto. O interesse na ‘fritura’ de Ricardo Salles não é deste ou daquele indivíduo. É algo bem maior. A queda do titular do Meio Ambiente, conforme demonstrado acima, é empenhada por pessoas que, apesar de fazerem parte do governo federal, não possuem compromisso com as pautas e bandeiras que sempre foram consenso durante a campanha eleitoral de 2018.
*Texto atualizado às 16h21 de 23/10/2020 para acréscimo de informações.