Em entrevista realizada pelo movimento Docentes pela Liberdade e cedida ao Conexão Política, o professor de ensino médio de uma escola pública de Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal, Francisco Gadelha Araújo Martins, fala sobre o uso de seu mestrado na Universidade de Brasília para levar conhecimento de ponta a seus alunos.
“Ensinar biologia é encantador. A teoria do preparo para o estresse oxidativo foi uma ferramenta facilitadora”
Para concluir sua tese de mestrado, o pesquisador e professor de Biologia no ensino médio Francisco Gadelha Araújo Martins superou um AVC e uma cirurgia no cérebro, além da pandemia de Covid-19. Filho de retirantes nordestinos, Francisco é professor do Centro Educacional 11, de Ceilândia, que fica bem na entrada na Favela do Sol Nascente, uma das maiores da América Latina. “Tenho mestrado, enquanto meus pais não têm nem ensino fundamental completo”, diz ele.
Convicto de que a educação muda o mundo, o professor Francisco decidiu dedicar sua tese a melhorar o ensino de biologia, implementando técnicas que atraíssem a atenção de seus alunos. Escolheu a teoria do preparo para o estresse oxidativo (POS, na sigla em inglês), inteiramente desenvolvida dentro da Universidade de Brasília (UnB) sob o comando do professor Marcelo Hermes de Lima.
A teoria, que explica como determinados animais invertebrados sobrevivem até semanas a condições de pouquíssimas concentrações de oxigênio, foi adaptada para a realidade da sala de aula da escola. Para motivar os alunos, e colocá-los em contato com o que há de melhor na produção acadêmica brasileira na área, Francisco desenvolveu uma série de ferramentas, incluindo o uso de um blog e de atividades baseadas na aplicação de ‘QR codes’.
O resultado do trabalho é a tese ‘Abordagem’ para o aprendizado científico no ensino médio: o fenômeno do preparo para o estresse oxidativo (POS) nos animais invertebrados como exemplo da construção do conhecimento. O trabalho foi apresentado ao Mestrado Profissional em Ensino de Biologia em Rede Nacional, do Instituto de Ciências Biológicas, da Universidade de Brasília, neste ano, por videoconferência, em meio à pandemia.
Na entrevista exclusiva concedida à equipe do movimento Docentes pela Liberdade (DPL), presidido pelo professor Marcelo Hermes, o professor Francisco explica as motivações de sua tese e de seu trabalho como docente em um ambiente tão desafiador.
[Em tempo: A conversa com o professor faz parte de um esforço do movimento Docentes pela Liberdade (DPL) em trazer pensadores competentes e capazes de agregar análises relevantes para o cenário nacional. As opiniões expressas na entrevista não reproduzem, necessariamente, as posições do DPL ou Conexão Política]
Qual é o tema da sua tese de mestrado? O que levou você a utilizar a teoria do preparo para o estresse oxidativo (POS) como exemplo?
A educação escolar de bioquímica, no ensino médio, na região onde atuo, é muito falha. Os alunos não veem relação do ensino de biologia no ensino médio com a realidade. Para motivar meus alunos, pensei então que precisava de um tema gerador, que atraísse o interesse da classe. Cheguei ao POS através dos meus professores do mestrado, e escolhi esse tema porque é uma teoria inovadora, totalmente produzida no Brasil, e muito interessante, que envolve uma série de conceitos diferentes, que poderiam aguçar o interesse dos alunos. Assumi então o desafio de trazer esse tema tão complexo para os estudantes do ensino médio.
O POS foi, portanto, um facilitador com o objetivo de melhorar a adesão às aulas de bioquímica. Funcionou, os alunos se sentiram muito interessados. É um tema que permite que os estudantes desenvolvam conhecimentos de inglês, ao entrar em contato com artigos científicos. Eles também têm contato com noções de física, ao entender como um organismo atua sob baixas temperaturas, e de química, ao descobrir como funciona um radical livre, o que é uma proteína. Você pode abordar de forma interdisciplinar.
O método que você utilizou durante a elaboração da tese, o blog, terá continuidade?
Além de ter continuidade, vamos ampliar, citando mais espécies que fazem POS e trabalhando essas informações no ensino médio. A ideia é que outros professores sigam os mesmos passos, utilizem a mesma receita. Penso em ir além, em fazer um aplicativo, para dar continuidade. Os adolescentes gostam muito de aplicativos.
Você cita na tese seu objetivo de levar educação de qualidade aos jovens de baixa renda do Distrito Federal. É possível? Quais são os principais desafios que precisam ser superados?
Esse foi um dos maiores desafios do projeto. Trabalho com alunos de baixa renda, que chegam na escola para comer um prato de comida. Não sabem o que é um artigo científico. E eu consegui trazer para eles um pouco do que a academia e a ciência proporcionam, o que me deixou muito feliz. Eu quero que eles tenham educação de qualidade. Alunos que conseguiram acessar pesquisas brasileiras ficaram encantados. E eles tiveram acesso a bastante tecnologia inserida, que incluiu a página de Facebook da escola e o uso de QR code, além do blog que registrava o avanço do conhecimento desses jovens. Para levar o mundo da produção científica aos jovens de baixa renda, o professor tem que estudar muito, ler muitos artigos, consultar outros professores e pesquisadores.
Quando foi que você decidiu se dedicar ao ensino de biologia? Como você vê a qualidade do ensino dessa disciplina nas escolas públicas das regiões carentes do Distrito Federal?
Decidi me dedicar ao ensino de biologia no meu ensino médio, quando vi aulas encantadoras do meu professor na escola. Eu nem pensava em ensino, mas durante a minha formação comecei a dar aulas, em regiões pobres e ricas, e agora estou na secretaria de educação do Distrito Federal, onde me identifiquei. Vejo muitos professores desmotivados, sendo que a motivação é o principal combustível. Ensinar biologia é encantador. É recompensador ver alunos que foram para a faculdade de Biologia por influência nossa. Encontramos alguns ex-alunos na Universidade de Brasília, isso é muito gratificante, nos dá uma motivação a mais para quando voltamos para a sala de aula. A situação da educação não é boa nas regiões carentes, mas pode melhorar.
Quais foram os principais desafios pessoais que você precisou superar para concluir a tese?
Logo no início do mestrado, eu tive uma diplopia, visão dupla, logo na primeira semana. No final do ano, sofri um acidente vascular cerebral, fiquei internado na UTI. Não sofri sequelas, ainda bem, e dei sequência ao mestrado. Depois de um ano de exames, descobri que o AVC era resultado de um cavernoma, um tumor benigno na cabeça. Marquei a operação, que era urgente. Um dia antes, fiz minha pré-defesa do mestrado. Fiz a operação logo no dia seguinte, retirei o tumor, graças a Deus tudo correu bem.
Depois fiz minha defesa, bem no meio da pandemia. Logo depois, fui diagnosticado com Covid! Mas me recuperei. Foram desafios variados, de saúde, vencendo olhando sempre para a frente, e pensando na educação, nas pessoas que posso mudar com meu mestrado. Talvez a teoria do POS faça meus alunos serem cientistas. Como pesquisadores, eles podem mudar o mundo, e esse é meu objetivo. Por isso fui com garra até o final, porque é assim que mudamos a educação no Brasil.