Faz alguns anos que me dedico a uma causa de extrema relevância para o nosso país, a qual, infelizmente, tem encontrado muitos poucos dispostos a somarem esforços para modificar o atual estado das coisas. Por inúmeras vezes, tenho me sentido como um pregador no deserto…
“Um país se faz com homens e livros!” – disse com bastante propriedade, há quase um século, o patriota Monteiro Lobato. Esta frase é de uma clareza indescritível: uma nação que se espera ou se deseja justa, próspera, somente poderá alcançar tal magnitude se o mais simples de seus cidadãos tiver acesso aos livros, aos textos de qualidade, sobretudo aqueles dedicados à formação técnica e profissional, base fundamental para a qualificação e a entrada dos egressos dos ensinos médio e superior no mercado de trabalho.
É de amplíssimo conhecimento a grave crise que assola a cadeia econômica editorial e do livro em nosso país. O problema não é recente, mas se intensificou nos últimos meses com o fechamento de editoras e de livrarias, fazendo baixas por todos os lados, sem exceção, desde as de pequeno porte até aquelas integrantes de conglomerados empresariais.
Como autor de livros técnicos e literários conheço bem de perto as agruras de todos os profissionais envolvidos com a questão, quer direta ou indiretamente. Escritores, ilustradores, revisores, editores, gráficos, livreiros e muitos outros mais dividem angústias e incertezas acerca do futuro de cada um destes, posto que interatuam, são complementares, assim como anseiam por soluções que possam contribuir para um efetivo retorno da dinâmica econômica setorial.
Enquanto não se descortinam caminhos para todos os segmentos, centro atenções nos livros técnico-científicos e profissionalizantes (CTP), aos quais me dedico por ofício e vocação de professor universitário, o que me transformou em escritor, defensor da temática, formador de novos autores e pensador acerca das diversas dimensões envolvidas no trato com a questão. Neste artigo, trago um pouco do pensar, das reflexões e muitas preocupações com o destino do segmento de livros CTP em nosso país.
Enquanto por todo o mundo, as grandes escolas se orgulham de que a formação básica em seus cursos, sobretudo na graduação, se dê a partir de textos de seus professores catedráticos, aqui no Brasil, poucas instituições de ensino superior valorizam o esforço dedicado por seus docentes à elaboração de livros voltados à boa formação de seus discentes de graduação. Produzindo seus próprios livros, os quais podem ser continuamente aprimorados, se assegura um patamar mínimo de qualidade de conteúdo por meio do qual os estudantes têm igualmente uma mínima formação compatível com as expectativas do mercado de trabalho. Além disso, o acesso aos autores da obra cria e reforça o vínculo com a instituição – o orgulho de ter o autor como o seu mestre, de ter doutrinadores como seus professores – no sentido formal de “aqueles que criam escola” é demonstração e afirmação do compromisso com a formação dessa camada e não apenas com aqueles que alcançam a pós-graduação, que em meu ver recebe – equivocadamente – quase todos os encantos no sistema universitário nacional. Ambos os níveis são importantes, mas com uma formação de excelência ainda no primeiro patamar da formação universitária, os resultados nos demais certamente lograriam maior êxito do que os vêm sendo alcançados nos últimos anos e, sem dúvida, se estabeleceria uma espiral exitosa e duradoura, a exemplo do que acontece nas principais instituições de ensino de todo o mundo e, justamente por isso, alcançaram e se mantêm nestas
posições.
No Brasil é possível atingir o topo da carreira universitária sem haver produzido um único livro-texto dedicado à formação da base, sem que haja a Cátedra, propriamente dita. Sem dúvida, há outros meios de se alcançar a “pontuação” necessária para ascender a esta posição, mas sem um livro que traduza e disponibilize o saber acumulado por este docente àqueles que ainda estão se iniciando ou que anseiam se aprofundar em determinada matéria a respeito da qual se espera domínio, parte importante deste percurso pode ser irremediavelmente perdido. Acredito, neste sentido, que a elaboração de um livro-texto deveria ser requisito essencial para a pretensão de ascensão à condição de professor titular, sem o que se perde muito da nobreza e do simbolismo desta posição.
Mas, para tanto, é preciso que se forme uma cultura institucional que valorize o esforço dedicado à redação de livros de formação básica ou avançada. O tempo pra a elaboração de um livro-texto é de cerca de 3 anos, em média, duração compatível com a publicação de um artigo resultante de pesquisas, apesar de serem valorizados de modo muito distinto em nossa Academia. E qual seria a razão para tanto? Uma possibilidade, como já citado, é a equivocada percepção de que a pós-graduação, em seu papel de “gerar novos conhecimentos”, seria a base para a pesquisa de qualidade e, portanto, mais importante para a nação do que uma sólida formação de técnicos e bacharéis com uma qualidade mínima assegurada, a despeito de estudos que comprovam cabalmente o baixo impacto do imenso volume de artigos publicados em distintas áreas do saber por docentes brasileiros. A implantação do “produtivismo”, por assim dizer, parece ter sido uma pá de cal nos destinos dos livros-texto nas carreiras dos docentes dos segmentos técnico e universitário de todo o território nacional.
Por exemplo, na IFES à qual estou vinculado, a normativa que regula as atividades docentes sequer faz menção à palavra livro! Não há incentivos, não há previsão para a redução de carga de sala de aula para que o docente possa se dedicar à elaboração de um livro-texto, assim como há para as atividades de pesquisa e, mesmo, para aquelas da chamada Administração universitária (Direção, Coordenação, Chefia e outras). Não raro, colegas me confessam que “é muito mais interessante” buscar uma destas atividades de gestão que, além de lhes conferir a referida redução de carga de sala de aula, assegura remuneração por função gratificada e os “pontos” necessários para a ascensão na carreira são obtidos de modo bem menos penoso do que dedicar horas e esforços à elaboração de um livro-texto, cuja remuneração é, via de regra, de apenas 10% do preço de capa bruto do exemplar vendido, sobre o que ainda incidirão impostos. Como dizem muitos: – Escrever livros técnicos neste país, não compensa!
Não há mecanismos para “anos sabáticos” dedicados à elaboração de livros-texto. Não há bibliotecas de disciplinas básicas de todos os cursos disponíveis gratuitamente para todo o alunado, em textos produzidos e atualizados continuamente por seus professores, como parte de uma política educacional. Textos que tragam exemplos de realidades locais, por meio dos quais se apropriem e se perpetuem saberes específicos de uma dada região, que associem esses conhecimentos com aqueles de caráter universal, fazendo valer o real significado de universidade!
Poucos dias passados, mantive contato com um dos candidatos à Presidência do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA), que congrega e representa em nível federativo todos os profissionais da Engenharia, e cuja eleição terá lugar neste mês de julho. Apresentei-lhe estas mesmas preocupações, sobretudo com o previsível advento do “lockdown” de livros do segmento CTP e o potencial impacto sobre a formação destes profissionais, bem como sobre o papel da engenharia para a reconstrução da economia nacional nestes tempos de pós-pandemia. Falei-lhe da importância das entidades profissionais se engajarem e envidarem esforços para a mudança concreta destes cenários. Não apenas as de Engenharia, mas de todas as profissões regulamentadas. Ao que parece, as minhas súplicas foram acolhidas e recebi a sinalização de que a entidade terá a questão do livro-texto como uma de suas diretrizes mais importantes para a formação dos futuros engenheiros, à qual me dedico como docente há quase 30 anos.
Somente a conjugação efetiva de esforços e a integração de medidas dedicadas à valorização do livro-texto em sua contribuição para a construção do país que desejamos entre as instituições de ensino, sobretudo as públicas, e as entidades profissionais poderão mudar os destinos da formação das próximas gerações em nosso país.
Tomara que ainda haja tempo… e o firme propósito de fazê-lo!
Antonio Nunes Barbosa Filho é membro do Movimento Docentes Pela Liberdade (DPL), possui graduação em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal da Paraíba (1991), mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal da Paraíba (1994) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2005), bacharelado em Direito (2009) – área de concentração: Direito do Trabalho.
Ele é professor da Universidade Federal de Pernambuco, desde 1993. Tem experiência na área de Engenharia de Produção, com ênfase em Ergonomia Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: pessoas com deficiência, condições de trabalho, projeto de produto, segurança do trabalho e acessibilidade.
O professor Antonio Nunes foi Coordenador de Transferência de Tecnologia da UFPE e é autor de livros nas áreas de Segurança do Trabalho e Gestão Ambiental, Segurança do Trabalho na Construção Civil, Segurança do Trabalho na Agropecuária e na Agroindústria, Saúde e Segurança Ocupacional em Arqueologia e Projeto e desenvolvimento de Produtos, publicados por editora de caráter nacional.