Na manhã seguinte do retorno de Ian Lahiffe a Pequim, ele encontrou uma câmera de vigilância montada na parede do lado de fora da porta de seu apartamento.
A lente estava apontando diretamente para ele.
Após uma viagem ao sul da China, o expatriado irlandês de 34 anos e sua família estavam iniciando a quarentena residencial de duas semanas, uma medida obrigatória imposta pelo governo do Partido Comunista Chinês de Xi Jinping para “impedir a propagação do coronavírus”.
Ian Lahiffe disse que abriu a porta quando viu a câmera de segurança instalada, sem aviso prévio.
“É uma invasão incrível da privacidade”, disse Lahiffe. “Parece apenas uma grande coleta de dados. E não sei o quanto isso é realmente legal”.
Lahiffe acredita que as imagens da câmera instalada estão sendo monitoradas pelos funcionários da comunidade em seu complexo residencial.
Esperam que ele fique em casa e não receba visitantes – tudo de um smartphone.
“O telefone do cara tem um aplicativo que mostra todas as portas”, disse Lahiffe sobre um dos funcionários da comunidade que instalou a câmera.
“Você pode ver todas as portas [dos apartamentos] das diferentes câmeras que foram instaladas”, disse ele.
Monitoramento de quarentena
Embora não haja nenhum anúncio oficial afirmando que as câmeras devem ser fixadas fora das casas das pessoas em quarentena, isso acontece em algumas cidades da China desde pelo menos fevereiro, de acordo com três pessoas que relataram sua experiência com as câmeras à CNN, além de publicações nas mídias sociais e declarações do governo comunista.
A China não possui uma lei nacional específica para regulamentar o uso de câmeras de vigilância, mas os dispositivos já fazem parte da vida pública local.
O governo comunista de Xi Jinping está sempre monitorando quando as pessoas atravessam a rua, entram em um shopping, jantam em um restaurante, entram em um ônibus ou sentam na sala de aula.
De acordo com um relatório da IHS Markit Technology, agora parte da Informa Tech, a China possui 349 milhões de câmeras de vigilância instaladas desde 2018.
A China também possui 8 das 10 cidades mais monitoradas do mundo com base no número de câmeras por 1.000 pessoas, de acordo com a empresa de pesquisa de tecnologia britânica Comparitech.
E agora, a pandemia trouxe as câmeras de vigilância para a vida privada das pessoas: desde espaços públicos na cidade até as portas da frente de suas casas.
Câmeras dentro de residências
O sistema de governo do Partido Comunista Chinês, não parou por aí, algumas pessoas denunciaram que câmeras foram instaladas dentro de suas casas.
William Zhou, funcionário público, retornou à cidade de Changzhou, na província oriental de Jiangsu, de sua província natal, Anhui, no final de fevereiro.
No dia seguinte, ele disse que um agente comunitário e um policial chegaram ao seu apartamento e montaram uma câmera apontando para a porta da frente – de uma porta de armário dentro de sua casa.
Zhou disse que não gostou da ideia. Ele perguntou ao agente da comunidade o que a câmera gravaria e o agente mostrou as imagens em seu smartphone.
“Eu estava na minha sala de estar e a câmera me capturou claramente em sua tela”, disse Zhou, que pediu para usar um pseudônimo por medo de perseguições.
Zhou ficou furioso. Ele perguntou por que a câmera não poderia ser colocada do lado de fora, mas o policial disse a ele que poderia ser vandalizada.
Zhou disse que a câmera permaneceu em sua casa, apesar de seu forte protesto.
Naquela noite, Zhou disse que ligou para a linha direta do prefeito e o centro de comando local de controle de epidemias para reclamar. Dois dias depois, dois funcionários do governo local apareceram à sua porta, pedindo que ele entendesse e cooperasse com os esforços de controle de epidemias do governo.
Eles também disseram que a câmera só tirava fotos quando a porta se movia e não gravava nenhum vídeo ou áudio.
Grande impacto
Mas Zhou não foi convencido pela conversa dos funcionários do governo.
“[A câmera] teve um enorme impacto em mim psicologicamente”, disse ele. “Tentei não fazer telefonemas, temendo que a câmera gravasse minhas conversas por acaso. Eu não conseguia parar de me preocupar, mesmo quando dormia, depois que fechei a porta do quarto. A instalação dentro de minha casa é uma grande invasão da minha privacidade.”
Zhou disse que outros dois moradores que estavam em quarentena em seu complexo residencial lhe disseram que eles também tinham câmeras instaladas em suas casas.
O centro de comando de controle de epidemias do distrito de Zhou confirmou à CNN o uso de câmeras para impor a quarentena doméstica, mas se recusou a fornecer mais detalhes.
Na cidade de Nanjing, leste do país, o governo do subdistrito de Chunxi postou fotos na rede social chinesa Weibo.
As imagens mostravam como as autoridades estavam usando câmeras para monitorar a quarentena.
Uma foto mostrava uma câmera em um armário dentro de um apartamento. Outra mostrava uma captura de tela de imagens de quatro câmeras, algumas das quais pareciam ter sido tiradas de dentro das casas das pessoas.
O governo do subdistrito de Chuxi se recusou a comentar.
O centro de comando para controle de epidemias no distrito disse que a instalação de câmeras não era uma política obrigatória, e alguns governos dos subdistritos optaram por adotar a medida.
Evolução das táticas
A China já está usando um sistema digital de “código de saúde” para controlar os movimentos das pessoas e decidir quem deve entrar em quarentena.
Para reforçar a quarentena doméstica, as autoridades locais recorreram novamente à tecnologia e iniciaram o uso de câmeras de vigilância.
O gabinete do subdistrito do governo em Nanjing, província de Jiangsu, disse que instalou câmeras do lado de fora das portas de pessoas em quarentena para monitorá-las 24 horas por dia.
O governo de Nanjing disse que a medida “ajudou a economizar gastos com pessoal e aumentou a eficiência do trabalho”, de acordo com seu post de 16 de fevereiro no Weibo.
Na província de Hebei, o governo do condado de Wuchongan, na cidade de Qianan, também disse que estava usando câmeras de vigilância para monitorar os residentes em quarentena em casa, de acordo com um comunicado em seu site.
Na cidade de Changchun, no nordeste da província de Jilin, as câmeras de quarentena no distrito de Chaoyang utilizam inteligência artificial para detectar formas humanas, informou o governo do distrito em seu site.
Na cidade oriental de Hangzhou, a China Unicom, uma operadora de telecomunicações estatal, ajudou os governos locais a instalar 238 câmeras para monitorar residentes em quarentena em casa desde 8 de fevereiro, disse a empresa em um post do Weibo.
No Weibo, algumas pessoas publicaram fotos das câmeras que, segundo elas, foram colocadas do lado de fora de suas portas, quando entraram em quarentena em Pequim, Shenzhen, Nanjing e Changzhou, entre outras cidades.
Postura legal
Atualmente, a China não possui uma lei nacional específica para regulamentar o uso de câmeras de vigilância em espaços públicos.
O Ministério da Segurança Pública chinês divulgou um projeto de regulamento sobre câmeras de segurança em 2016, mas a portaria ainda aguarda aprovação pela legislatura nacional do país.
Nos últimos anos, alguns governos locais emitiram seus próprios regulamentos sobre as câmeras.
Tong Zongjin, advogado de Pequim, disse que a instalação de câmeras do lado de fora da porta da frente de uma pessoa sempre esteve em uma área legal “cinza”.
“A área de fora da porta da frente da casa de uma pessoa não faz parte de sua residência particular e é considerada um espaço comum”, disse ele. “Mas a câmera pode estar monitorando algo pessoal, como quando o indivíduo sai e volta para casa.”
“Além da complexidade do problema, essas câmeras são instaladas pelas autoridades durante uma emergência de saúde pública para fins de controle de epidemias, de modo que a privacidade de um indivíduo deve ser equilibrada com o interesse e a segurança do público”, disse Tong.
A CNN solicitou comentários do Ministério da Segurança Pública da China, mas este não aceitou os pedidos da CNN por fax.
Por enquanto, parece que as câmeras de vigilância nas portas da frente das casas é temporário. Depois que Ali e Zhou terminaram a quarentena, eles disseram à CNN que as câmeras foram retiradas.
Os funcionários da comunidade disseram a Zhou que ele poderia ficar com a câmera gratuitamente. Mas Zhou ficou tão furioso por ter que viver monitorado por duas semanas que ele disse que pegou um martelo e quebrou o dispositivo na frente dos funcionários da comunidade.
“Não suporto a ideia de que a nossa vida cotidiana está completamente exposta à observação crítica do governo”, disse William Zhou.