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O novo Código de Sistema Penal da Bolívia persegue opositores do presidente Evo Morales, no poder desde 2006, criminaliza relações humanas, fere direitos fundamentais – como à vida, à livre expressão, à ampla defesa, criminaliza o cristianismo, libera aborto e drogas, estatiza escolas particulares, acaba com o direito de herança, criminaliza a propriedade privada, etc – e abre brecha para a quarta reeleição presidencial em 2019, o que fere o artigo 168 da Constituição da Bolívia.
Leia alguns dos artigos contidos neste novo Código do Sistema Penal boliviano, os que atualmente vêm provocando o conflito generalizado em toda Bolívia:
1. Os artigos que iniciaram a oposição ao novo Código do Sistema Penal boliviano são o 205 e o 137. O primeiro deles refere-se ao delito de “dano à saúde ou integridade física por má prática”, o que por ser ambíguo, de interpretação ampla, e prever punições tais como a da cassação do exercício profissional. É visto como um atentado ao direito ao trabalho previsto na Constituição Política do Estado, além de entender que a cassação constitui uma punição de morte civil, não só no setor da saúde, mas também no exercício de todas as profissões, ofícios ou atividades às que pode se dedicar o cidadão boliviano.
Em relação ao segundo artigo, o 137, que se refere ao “homicídio culposo com meio de transporte”, que conta com redação similar ao de número 205, gerou o mesmo efeito de oposição no setor de transporte público, provocando a adesão dos cidadãos bolivianos em apoio à greve de aproximadamente 50 dias.
2. Diante das mobilizações generalizadas da sociedade, que se soma ao movimento do setor de saúde e de transporte público, o presidente do Estado Plurinacional da Bolívia solicita que a Assembleia Legislativa Plurinacional revogue os referidos artigos – 205 e 137 – além de fazer a revisão dos artigos 293 e 294, que de maneira textual dispõem:
“ Artigo 293 (sedição). I. A pessoa que, sem desconhecer a autoridade do Governo legalmente constituído, se alce publicamente e em aberta hostilidade para depor a alguma servidora, servidor, empregada ou empregado público, impedir sua posse ou opor-se ao cumprimento de leis ou decretos, exercer algum ato de ódio ou de vingança contra a pessoa ou bens de alguma autoridade ou transtornar ou turbar a ordem pública, será punido com prisão de um (1) a três (3) anos e prestação de trabalho de utilidade pública.
II. No caso das pessoas que incorreram no parágrafo I do presente artigo se submeterem ao primeiro requerimento da autoridade pública, sem haver causado outro dano que a perturbação momentânea da ordem, só serão punidos os promotores ou diretores, a quem se aplicará a metade da sanção prevista.
III. Não é punível a manifestação quando se aponte a contravenção da ordem constitucional ou dos direitos fundamentais”.
O número II constitui uma disposição de interpretação aberta que deixa de cumprir a prerrogativa constitucional de não obrigar ninguém a produzir prova contra si mesmo em matéria penal, o que pode ser entendido como a proibição de provocar autoincriminação, prevista no artigo 121 da Constituição Política do Estado. Por outro lado, o dispositivo não identifica diante de qual autoridade pública deve se submeter o autor do delito, ou seja, se é ante a autoridade a quem se pretender criticar ou se é diante da autoridade jurisdicional – juiz ou tribunal.
O número III constitui uma cláusula aberta que pretende eximir de culpa. No entanto, não está claro quem é a autoridade que vai definir se a ação teve caráter de evocar ou defender os direitos fundamentais, é uma cláusula bastante subjetiva.
Esta norma, de maneira geral, é contrária à Constituição Política do Estado no seu artigo 51, que reconhece o direito à sindicalização dos trabalhadores e todas as consequências desse direito como o direito à greve e mobilizações em direito à classe trabalhadora.
“ Artigo 294 (atribuir-se os direitos do povo). I. A pessoa que faça parte de uma força armada ou grupo de pessoas às quais se atribuam os direitos do povo e pretendam exercer tais direitos em seu nome, será punida com prisão de dois (2) a quatro (4) anos e, quando convier, à inabilitação [cassação do direito de exercício da profissão].
II. As ações de mobilização social, não constitutivas das condutas descritas no parágrafo precedente, que tenham por finalidade a reivindicação ou exercício de direitos humanos, direitos sociais ou qualquer outro direito constitucional, não serão consideradas como [o delito de] atribuir-se os direitos do povo.
O número II desta norma, de maneira geral, é contrária à Constituição Política do Estado em seu artigo 51, que reconhece o direito à sindicalização dos trabalhadores e, portanto, todas as consequências desse direito como o direito à greve e mobilizações em defesa dos direitos da classe trabalhadora tal como ocorre com o artigo 205 antes referido.
3. No conteúdo do novo Código de Sistema Penal Boliviano estão previstos como delitos as lesões, sejam estas leves, graves ou gravíssimas. Por outro lado, estão tipificados como delitos o homicídio culposo e o assassinato, nos quais pode ser enquadrado qualquer cidadão, incluídos os médicos e profissionais de saúde em geral, assim como os motoristas; ou seja, os que se interprete que cometeram esses delitos podem merecer também a pena de cassação profissional, explicada no item anterior, o que permite entender que é insuficiente revogar apenas os artigos 205 e 137. É necessário assinalar que esses últimos artigos do novo Código de Sistema Penal boliviano são os que provocam os conflitos no país, precisamente pela punição prevista de cassação profissional – morte civil – ao setor médico e dos motoristas, os mesmos que foram revogados pela lei de 10 de janeiro desse ano, através da Lei 1025.
4. Dentro da classificação das punições penais aplicáveis a cidadãos, tem-se a inabilitação (cassação de registro profissional), que pode ser de 6 meses até 10 anos, estabelecendo que a inabilitação será de cumprimento efetivo pelo tempo estabelecido na sentença, independentemente do cumprimento, redução ou eliminação das outras sanções impostas. Então, se bem que o autor de um delito é merecedor de algum benefício com o indulto da privação de liberdade, a inabilitação se deve cumprir pelo tempo determinado na sentença, o que supõe um castigo de morte civil para o cidadão que foi condenado.
5. O delito de injúria, previsto pelo artigo 309 no novo Código de Sistema Penal boliviano (vigente no atual Código Penal), passa de delito de ordem privada a delito de ordem pública, de maneira incoerente. Além disso, no entanto, este artigo, no número II, atenta ao direito de liberdade de expressão e informação em meios massivos de comunicação, porque pune a pessoa que reproduza em meios de comunicação a injúria inferida por outro.
Esta mesma redação se tem nos delitos de calúnia e difamação nos artigos 310 e 311.
Para uma melhor compreensão, devo manifestar que: o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de maneira coincidente trazem que:
“Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões, e o de difundi-las sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão”.
Agora, considerando que todo direito tem limites em seu exercício, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabeleceu que o exercício desses direitos não pode estar sujeito à prévia censura, mas a responsabilidades posteriores, as que devem estar expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar, entre outros: o respeito aos direitos ou à reputação dos outros.
O novo Código de Sistema Penal boliviano, em relação a esses delitos, é de interpretação aberta que, assim, contradiz a garantia prevista pelo artigo 106-II da Constituição Política do Estado e os tratados, pactos, convenções antes assinaladas, pois castiga com 100 a 250 dias de detenção, reparação econômica e proibição de ir a certos lugares ou aproximar-se à vítima, a pessoa – jornalista, comunicador, internauta – que reproduza a injúria, ainda sem ser a autora do delito, só por reproduzir dito agravo à dignidade ou à honra da vítima, deixando de lado o princípio elementar do direito penal como é o intuito personae, que significa que se deve castigar o autor do fato e não a terceiras pessoas.
Agora, o Informe Anual 2009 da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, depois de estabelecer que a liberdade de expressão e opinião nas redes sociais constitui uma das formas mais democráticas de expressão, assinalou que os Estados devem estabelecer normas legais que prevejam disposições de limitação da responsabilidade de intermediários por conteúdos que não são de sua autoria, já que em nenhum caso se constituem em delitos, pelo fato de que tal interpretação representaria censura prévia ao exercício dos direitos de liberdade de expressão e opinião.
Neste cenário, pela promulgação do novo Código do Sistema Penal Boliviano, meses antes das eleições presidenciais, quer-se rejeitar o resultado do referendo do dia 21 de fevereiro de 2016, com a acusação de que foram as redes sociais as responsáveis pelo resultado “não” à reforma constitucional do artigo 168, que permite a reeleição do presidente e do vice-presidente apenas uma vez. Com isso, abre-se passagem para que o atual presidente e vice-presidente possam se apresentar novamente ao processo eleitoral referente ao período de 2020 a 2025.
6. Ao sancionar esse Código, a Assembleia Legislativa Plurinacional não exerceu o Controle de Convencionalidade, pois contradiz Tratados e Convênios Internacionais sobre Direitos Humanos, quando em seu artigo 157-V determina, sem razão técnica, as causas que eximem de culpa o delito do aborto, ao estabelecer 8 semanas par a interrupção da gravidez, quando a Corte Interamericana na sentença do caso Artavia Murillo e outros vs. Costa Rica determinou como prazo 14 dias, vulnerando dessa maneira o caráter vinculante e obrigatório das determinações emitidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, afetando dessa maneira o direito fundamental e humano mais importante como é o direito à vida.
No Código Penal vigente até então, o aborto está proibido salvo as causas estabelecidas no artigo 266 referentes a:
“Quando o aborto tiver sido consequência de um delito de violação, rapto não seguido de matrimônio, estupro ou incesto (…); Tampouco será punível se o aborto tiver sido praticado com o fim de evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe e se este perigo não poderia ser evitado por outros meios.
Em ambos os casos, o aborto deverá ser praticado por um médico, com o consentimento da mulher e autorização judicial em seu caso”.
7. O artigo 297 do Código Penal vigente estabelece delito de “atentado contra a liberdade de ensino” como resguardo da atividade própria e principal do sistema educativo da Bolívia. No entanto, este mesmo delito não se encontra contemplado no novo Código do Sistema Penal Boliviano, o que contradiz o disposto pelo artigo 9-5 da Constituição Política do Estado, que considera a educação como fim e função fundamental do Estado boliviano.
8. O artigo 19 estabelece de maneira inexplicável toda infração penal como dolosa, sendo a exceção a esta regra – a culpa – quando assim o determine o código, e introduz a culpa temerária, que resulta lesiva aos interesses dos cidadãos, se si considera que a culpa é imprevista, a diferença do dolo que constitui uma ação prevista ou querida em seus resultados.
9. O artigo 88 do novo Código do Sistema Penal Boliviano estabelece o delito de “tráfico de pessoas”, impondo sanção de 7 a 12 anos de prisão e reparação econômica, em casos que se enumeram, entre eles o conflitivo número 11 que se refere ao
“Recrutamento de pessoas para sua participação em conflitos armados ou em organizações religiosas ou de culto”.
Esta disposição é contrária ao previsto pelo artigo 14-II da Constituição Política do Estado, que estabelece que o Estado boliviano é laico, ou seja, não reconhece religião oficial, já que pune em razão de escolha de credo e atividade religiosa. Em Bolívia, existem muitas religiões que precisamente se dedicam ao recrutamento de pessoas com fins religiosos ou de culto, o que motivou que representantes de diferentes religiões se opuseram a esse dispositivo, pois sua atividade principal está penalizada.
10. De maneira geral, pode-se constatar que a pena é reduzida nos delitos de ação pública como o delito de roubo, sequestro, assassinato e outros. Por outro lado, são revogados alguns crimes de corrupção e minimizadas as penas para os ilícitos subsistentes, o que o povo boliviano entendeu que significa estabelecer normas adequadas para que os funcionários de Estado não sejam processados por esses delitos quando cessem suas funções.
Os artigos comentados são alguns – os mais polêmicos – de todos os que atualmente estão gerando a crise social na Bolívia. No entanto, se for efetuada uma revisão detalhada em praticamente todo o conteúdo do Código do Sistema Penal Boliviano, pode-se verificar que existem imprecisões que permitem afirmar que é necessária a revogação de todo o Código, para que se possa construir um novo, com a participação de setores da sociedade civil, como as universidades – faculdades de Direito – associações de profissionais e outros, que permitam contar com um instrumento normativo aplicável à realidade boliviana adequado à Constituição Política do Estado e Tratados, Pactos e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos.
Ao entrar em vigor, o Código do Sistema Penal Boliviano, além de não cumprir o princípio da taxatividade (a necessidade de que as leis penais sejam precisas para evitar injustiças) e, pelo contrário, ao conter cláusulas abertas e demasiado subjetivas, coloca todos os bolivianos em estado de insegurança jurídica, pois criminaliza toda a relação humana.
Este Código do Sistema Penal Boliviano é um instrumento de perseguição àqueles que não formam parte do partido do governo, pois se converte em uma arma perfeita para isso, considerando que entrará em vigor meses antes do processo eleitoral para a eleição de presidente e vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, com grave prejuízo ao Estado Constitucional e Democrático de Direito.