No mês passado, as irmãs Maria, Angelina e Krestina Khachaturyan, agora com 18, 19 e 20 anos, foram indiciadas por homicídio premeditado, em um caso que provocou indignação e apontou a forma como o sistema judiciário russo lida com casos de violência doméstica e abuso sexual.
Certa noite, no verão passado, Mikhail Khachaturyan decidiu que sua sala de estar não estava arrumada o suficiente, então ele convocou suas três filhas adolescentes, uma a uma, e encharcou cada uma delas com spray de pimenta.
De acordo com os registros do tribunal, havia pouco incomum nesta noite na casa de Khachaturyan, exceto por uma coisa: as irmãs decidiram que não poderiam mais aceitar a violência e o abuso. Esperaram até o pai adormecer em sua cadeira de balanço e o atacaram com uma faca de cozinha e um martelo. Ele lutou, mas morreu em poucos minutos.
Indignação popular
Os defensores das irmãs protestaram em frente a embaixadas russas, em mais de 20 locais no exterior. E um teatro encenou uma performance em solidariedade às três jovens. Também haviam planejado uma grande manifestação no centro de Moscou, mas foram obrigados a cancelá-la, devido à recusa da Prefeitura em fornecer segurança para a demonstração.
O caso das três adolescentes inspirou Zarema Zaudinova, de 29 anos, a dirigir uma performance no Teatro, combinando as experiências arrepiantes das irmãs, com as histórias pessoais da artista. A atriz contou no palco, sua própria história, de ter sido molestada por um parente do sexo masculino aos 12 anos de idade.
Para Zaudinova, o caso de Khachaturyan foi a última gota.
“Não temos proteção. Nós ou seremos estupradas ou seremos presas se nos defendermos”, disse Zaudinova.
Além dos protestos, mais de 200 mil pessoas assinaram uma petição on-line, pedindo aos promotores que retirem as acusações de assassinato, que podem levar as irmãs à prisão por até 20 anos.
Legislação russa
Em 2017, o presidente Vladimir Putin assinou uma lei que descriminaliza algumas formas de violência doméstica, que não tem uma definição fixa na legislação russa.
Este projeto de lei, substituiu os termos da prisão, por multas em certos casos de violência doméstica. A medida provocou um debate público sobre violência doméstica e abuso em um país onde um provérbio diz: “Se ele bate em você, isso significa que ele te ama.”
Além disso, a polícia rotineiramente fecha os olhos para os casos de abuso doméstico, enquanto medidas preventivas, como ordens de restrição, estão faltando ou não são amplamente aplicadas no país.
Abusos
Os documentos do tribunal mostraram que as irmãs Khachaturyan foram repetidamente espancadas pelo pai, um veterano de guerra, e abusadas sexualmente. Ele mantinha um estoque de facas, armas e rifles em casa, apesar de ter sido diagnosticado com um distúrbio neurológico, e era conhecido por atirar dentro de casa. Ele repetidamente ameaçou vizinhos e familiares com violência.
Conforme relatos da AP News, os advogados das irmãs Khacharutyan dizem que as meninas foram levadas ao limite.
“No primeiro dia em que nos encontramos, elas disseram que estão melhor aqui, na prisão, do que em casa do jeito que estava”, disse o advogado das irmãs, Alexei Liptser.
Ir à polícia não era uma opção para as vítimas de Khachaturyan, que temiam que a vida delas só piorasse. As meninas compartilharam alguns dos horrores que passaram com seus amigos de escola. Porém, pediram a estes que não fossem à polícia.
No ano anterior ao ataque, as meninas compareceram no total, menos de dois meses às aulas. Mesmo assim, a administração da escola não tomou providências.
Circunstâncias extraordinárias
Promotores reconhecem as extraordinárias circunstâncias violentas que levaram os adolescentes a atacar e eventualmente, matarem seu próprio pai. Mas eles insistem que Maria, Angelina e Krestina sejam julgadas por assassinato. Os advogados das irmãs argumentam que elas estavam agindo justamente em autodefesa, em circunstâncias de abuso duradouro e violência com risco de vida.
As irmãs foram libertadas sob fiança e além de serem proibidas de se verem, também não podem entrar em contato com testemunhas do caso e com a mídia.
Estatísticas
Uma pesquisa sobre casos de tribunais penais russos, compilados pela mídia Media Zona, mostra que de 2.500 mulheres condenadas por homicídio culposo ou assassinato em 2016 a 2018, quase 2.000 mataram um membro da família, em um ambiente de violência doméstica.
“O caso Khachaturyan é bastante indicativo da situação geral da violência doméstica e de como o Estado russo responde a esse problema”, disse Yulia Gorbunova à AP News. Yulia é autora de um extenso relatório de 2018, sobre violência doméstica para a Human Rights Watch.
A Human Rights Watch documentou casos em que “um caso muito claro de autodefesa” não foi reconhecido como tal pelos promotores e levou à prisão da vítima, de acordo com Gorbunova.
“A escolha para essas mulheres foi morrer ou se proteger da melhor maneira possível”, disse Gornunova.
Mentalidade russa
Gorbunova disse que a percepção pública da violência doméstica vem mudando, desencadeada por casos judiciais altamente divulgados, como o das irmãs Khachaturyan ou o caso de Margarita Gracheva, cujo marido, anteriormente denunciado à polícia por ameaças de violência, a levou para uma floresta e cortou ambas as mãos. Em 2018, seu marido foi condenado a 14 anos de prisão; uma vitória rara para uma vítima de violência doméstica na Rússia.
De acordo com Zaudinova, o veredicto no caso das irmãs Khachaturyan enviaria uma forte mensagem à sociedade russa.
“Precisamos lutar por isso e falar alto e claro. Se as meninas forem mandadas para a prisão e o tribunal não reconhece que aquilo foi autodefesa, eles estarão colocando mais pessoas na prisão e ninguém poderá fazer algo contra a pessoa que decide te estuprar ”, disse Zaudinova, atriz que participou da encenação teatral em solidariedade às três jovens.
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