Três ações que questionam a legalidade do contrato de trabalho intermitente, introduzido pela reforma trabalhista de 2017, estão na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana. O julgamento, que foi interrompido em 2022, poderá resultar na declaração de inconstitucionalidade desse modelo e afetar cerca de 3 mil processos trabalhistas em tramitação.
O contrato intermitente permite que os períodos de trabalho sejam descontínuos, sem a exigência de uma jornada fixa, como nos contratos tradicionais de 35 ou 40 horas semanais. Na prática, o trabalhador é remunerado por hora trabalhada, um modelo amplamente utilizado nos Estados Unidos e em países da Europa.
A lei, aprovada durante o governo de Michel Temer (MDB), determina que o valor da hora trabalhada não pode ser inferior ao salário mínimo. Além disso, o empregador deve notificar o trabalhador com antecedência sobre quando seus serviços serão necessários.
Desde sua implementação, o contrato intermitente tem sido alvo de críticas por parte de entidades sindicais, que alegam que ele pode levar à precarização das condições de trabalho. Por outro lado, o setor produtivo vê a modalidade como uma forma de flexibilização das relações trabalhistas.
Se o STF decidir pela inconstitucionalidade do contrato intermitente e optar por modular a decisão em relação aos contratos já existentes, os efeitos podem ser significativos para o mercado de trabalho. Liane Garcia, especialista da A.C Burlamaqui Consultores, destaca as possíveis repercussões dessa decisão.
“A decisão [da inconstitucionalidade] poderá impactar fortemente na economia, com a possibilidade de eventuais dispensas em massa de trabalhadores das empresas que não tenham condições de suportar os custos com o empregado”, afirma Liane.
Placar está empatado no STF
As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 5826, 5829 e 6154), que contestam a legalidade do contrato de trabalho intermitente, foram apresentadas em 2020 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), junto com entidades representando trabalhadores de postos de combustível (Fenepospetro) e operadores de telemarketing (Fenattel).
Essas entidades argumentam que regimes flexíveis de trabalho violam princípios fundamentais estabelecidos na Constituição, como o da dignidade humana e o valor social do trabalho.
Na época, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu um parecer contrário à declaração de inconstitucionalidade.
Atualmente, o julgamento no STF está empatado, com dois votos a favor e dois contra. O ministro Edson Fachin, relator do caso, votou pela inconstitucionalidade da modalidade, argumentando que ela coloca o trabalhador em uma posição vulnerável. Em contraste, os ministros Nunes Marques e Alexandre de Moraes divergiram, defendendo a legalidade do contrato intermitente.
O julgamento foi retomado apenas em 2022, no plenário virtual, quando a ministra Rosa Weber (hoje aposentada) votou acompanhando o relator Edson Fachin, embora com algumas ressalvas.
No entanto, o ministro André Mendonça pediu destaque, o que interrompeu a análise e transferiu o caso para o plenário físico do STF.
Especialistas defendem constitucionalidade
Embora não sejam amplamente adotados, os contratos de trabalho intermitente representam 1% dos trabalhadores formalmente empregados no Brasil, num universo de aproximadamente 100 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Esses contratos são mais comuns em atividades como atendimento, construção civil, cozinha, e vendas em geral.
De acordo com o Ipea, o número de ações trabalhistas questionando esses contratos aumentou 116% entre 2021 e 2023.
Apesar da imprevisibilidade quanto ao desfecho do julgamento no STF, especialistas consultados pela Gazeta do Povo consideram que a modalidade é constitucional.
Victor Emmanuel P. Gallo B. de Souza, do Abagge Advogados, destaca que o contrato intermitente permitiu a formalização de profissionais informais ou freelancers que antes estavam à margem de qualquer regulamentação.
A legislação garantiu aos trabalhadores intermitentes o direito ao pagamento proporcional de benefícios estabelecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como férias, 13º salário e repouso semanal remunerado.
“É inegável que o intuito dessa forma alternativa de trabalho foi justamente oposto ao que se pretende defender nas ADIs”, afirma Victor Emmanuel P. Gallo B. de Souza, do Abagge Advogados. “Ela trouxe para a proteção das relações empregatícias uma realidade até então claramente desregulamentada.”
Liane Garcia, da A.C Burlamaqui Consultores, também não vê retrocesso ou precarização nas relações de trabalho. “Esta novidade legislativa pode representar um avanço para empresas que precisam se adaptar às demandas do mercado, especialmente em setores com trabalho sazonal.”
Gallo B. de Souza ressalta a necessidade de flexibilização das relações de trabalho diante das novas tecnologias, como o home office e o part-time (trabalho em regime de tempo parcial).
Ele acrescenta que parte desse movimento já vem sendo absorvido pelo Judiciário brasileiro. “Um exemplo disso foi a decisão na ADPF 324, que legitimou a antes criticada pejotização.”
Demissão por justa causa será discutida
O STF deve retomar o julgamento sobre a constitucionalidade do decreto presidencial que retirou o Brasil da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual impede a demissão sem justa causa de empregados.
A Convenção 158, que proíbe a dispensa injustificada, foi adotada pelo Brasil através de decretos legislativo e presidencial, integrando-se à legislação nacional.
A norma esteve em vigor até novembro de 1996, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) denunciou a Convenção à OIT, efetivamente encerrando seus efeitos no país. O Decreto 2.100/1996 oficializou o fim da aplicação do tratado no Brasil.
Atualmente, a legislação trabalhista brasileira permite ao empregador demitir um empregado a qualquer momento, sem necessidade de justificativa, desde que sejam pagas as indenizações previstas por lei.
Em 1997, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ingressaram no STF com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1625, contestando o decreto presidencial que retirou o Brasil da Convenção 158 da OIT.
Quase 27 anos depois, o debate em torno de quatro diferentes interpretações sobre o caso continua. Esses pontos de vista divergentes serão, finalmente, analisados pelo plenário do STF, que deverá decidir a questão.